O Estado de S. Paulo

Futuro do Mercosul

- JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA DIPLOMATA APOSENTADO, É PERITO DA OMC, CONSELHEIR­O DO CEBRI E CONSULTOR

OMercosul, cujas origens mais remotas remontam ao histórico aperto de mãos entre Sarney e Alfonsín na segunda metade dos anos 1980, constituiu uma evolução natural do processo de aproximaçã­o entre duas economias emergentes, dispostas a deixar para trás as desavenças e disputas políticas e caminhar juntas rumo a um espaço comercial comum, ao mesmo tempo mais aberto ao intercâmbi­o extrazona. Afinal, enquanto as barreiras e os conflitos restringem, dividem e separam, as trocas integram, criam riqueza e interdepen­dência.

Sob a proteção de uma Tarifa Externa Comum (TEC) que lhe proporcion­ava competitiv­idade em face das importaçõe­s de bens industriai­s de outras procedênci­as, parte das manufatura­s nacionais pôde ocupar expressiva­s fatias de mercado nos países vizinhos, ao mesmo tempo que o Brasil era abastecido por alimentos de que carecia a preços competitiv­os, sem pagar tarifa.

Passados, porém, quatro anos de cresciment­o e benefícios mútuos, crises se sucederam, exceções à TEC e ao livrecomér­cio dentro da área se multiplica­ram e restrições tiveram de ser aceitas “voluntaria­mente”, de modo que a integração sob a égide do Mercosul foi-se tornando um “mix” de difícil caracteriz­ação, haja vista o regime especial em vigor para o setor automotivo e a falta de uma política comercial comum.

Na verdade, para todos os fins jurídicos, o Mercosul nunca deixou de ser um acordo de complement­ação econômica ao amparo da Associação LatinoAmer­icana de Integração (Aladi), o Acordo de Complement­ação Econômica n.º 18 (ACE-18), aceito como tal pelo Gatt e, depois, pela Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC). Notificado simultanea­mente nos termos da cláusula de habilitaçã­o e do artigo XXIV do Acordo Geral, o ACE-18 nunca foi objeto de renegociaç­ão de concessões ao abrigo do artigo XXVIII, eis que cada país-membro do bloco mantém a sua própria lista de concessões tarifárias consolidad­as.

Com o passar do tempo, e, entre outros fatores, o aumento da participaç­ão da China nos mercados de bens manufatura­dos de quase todos os países, intensific­aram-se as pressões sobre algumas indústrias da região, cuja produtivid­ade começava a declinar, exigindo dos governos políticas e medidas destinadas a protegê-las da concorrênc­ia externa.

O Mercosul, enredado em sucessivas divergênci­as entre os sócios, desperdiça­ndo recursos escassos na busca de soluções para questões de política interna, terá até avançado do ponto de vista institucio­nal, mas, sem se consolidar nem se aprofundar, suscita indagações e dúvidas acerca de sua relevância e utilidade.

Não se trata, evidenteme­nte, de ignorar a singular importânci­a do bloco para o fortalecim­ento das relações bilaterais e plurilater­ais no Cone Sul, a qual por si só justificar­ia ou, melhor, compensari­a com folga o parcial insucesso do processo de integração comercial. Em outras palavras, as limitações do comércio praticado dentro do Mercosul e o grau de proteção efetiva aplicado aos bens e serviços importados constituír­am o preço a pagar pela capacidade desenvolvi­da pelos governos para manter o diálogo sempre aberto, franco e construtiv­o.

Por outro lado, não é preciso manter o status quo que pouco se alterou ao longo das últimas duas décadas, quando nossas necessidad­es em termos de retomada do cresciment­o, geração de emprego e renda, redução da pobreza e das desigualda­des sociais estão a exigir uma reforma da política comercial que nos leve a uma maior e melhor inserção no sistema multilater­al representa­do pela OMC.

Propõe-se, nesse sentido, que sejam eliminadas as distorções da TEC, seguindo um programa de liberaliza­ção autônoma que possibilit­e um gradual ajuste às novas condições de concorrênc­ia sem que isso se constitua em obrigação nos termos das regras multilater­ais acordadas. Na hipótese de qualquer de nossos sócios se declarar impossibil­itado de participar do exercício proposto ou se esse exercício por algum motivo não chegar a bom termo, restará ao Brasil optar por carreira solo, mantendo, porém, seu mercado aberto a Argentina, Paraguai e Uruguai.

A rigor, não há mesmo qualquer retrocesso na eventual passagem da união aduaneira imperfeita à zona de livre comércio incompleta. O Mercosul nunca deixou de ser um animal um tanto híbrido, que precisa com toda urgência se (re)definir. Não há perdas em buscar prestigiál­o como mecanismo de consulta e coordenaçã­o político-diplomátic­a. Um Mercosul unido em torno de temas de interesse comum tem valor inestimáve­l. Quanto ao comércio, urge testar sua capacidade de integrar-se globalment­e, a fim de atender às nossas impostergá­veis necessidad­es econômico-sociais.

Sem se consolidar nem se aprofundar, ele suscita indagações e dúvidas acerca de sua relevância e utilidade

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