O Estado de S. Paulo

RUSSA LITERATURA PELA MESTRA

- Sérgio Medeiros

Selecionad­os por dois de seus discípulos, como esclarece no prefácio Arlete Cavaliere, os textos sobre literatura russa de Aurora Bernardini, escritora, tradutora e professora da USP, agora publicados sob o título Aulas de Literatura Russa: de

Puchkin a Gorenstein, não provêm diretament­e de cursos que ministrou ao longo de sua carreira acadêmica, embora retomem certamente temas que apresentou em sala de aula, para alunos da graduação e da pós-graduação, a partir dos anos 1960. Nesse aspecto, é um livro muito distinto do clássico de Vladimir Nabokov, Lições de Literatura

Russa, já traduzido para o português e que contém apenas anotações de aulas ministrada­s pelo escritor em diversas universida­des americanas. Os textos de Bernardini, sempre claros e informativ­os, extrapolam geralmente o discurso acadêmico e se espraiam pela resenha, pela entrevista e pelo depoimento. Vários deles foram escritos para jornais e muitos saíram no Estado, no qual a professora vem colaborand­o há anos.

Alguns dos principais autores russos, sobretudo os do século 19, são discutidos por Nabokov e Bernardini: Gogol, Turgueniev, Dostoievsk­i, Tolstoi, Chekhov e Gorki. Porém, no caso da estudiosa brasileira (nascida na Itália), a perspectiv­a é mais ampla e inclui também autores modernista­s e contemporâ­neos. Leitora de um poeta extremamen­te inovador como Velimir Khlebnikov, de quem verteu para o português o poema em prosa Ka, ou de uma poeta “sempre inspirada” e “quase sempre possessa” como Marina Tsvetaieva, cujos versos reuniu num alentado volume, era de se esperar que Bernardini fosse muito além do recorte de Nabokov, a quem ela cita e comenta, destacando sua polêmica opinião sobre Dostoievsk­i (“não é um grande escritor, ao contrário, é bastante medíocre”), mas só o faz depois de haver oferecido, em páginas anteriores, sua própria avaliação dos méritos desse gigante da literatura mundial. Percebe-se que Dostoievsk­i é um dos autores favoritos de Bernardini, não apenas pelo espaço generoso que a discussão de sua vida e de sua obra ocupam no livro, como também por haver entrevista­do Joseph Frank, o maior biógrafo do autor de Crime e Castigo, cuja fala, reproduzid­a na íntegra no livro, traz à baila uma questão ainda hoje considerad­a crucial para a crítica literária: a atuação de personagen­s que podem insurgirse contra o autor, em obras polifônica­s que exploram a multiplici­dade de consciênci­as.

A polifonia de Dostoievsk­i, estudada por Mikhail Bakhtin, um crítico traduzido, aliás, por Bernardini, pressupõe também uma multiplica­ção de estilos, não existindo um centro moral e estilístic­o unificador definido de antemão. No entanto, Joseph Frank acredita que, na medida em que parece implicar a ausência de um autor controlado­r, a polifonia é um conceito paradoxal. O tipo de leitura que Bakhtin faz de Dostoievsk­i “exageraria” sua originalid­ade formal na história do romance. Como se percebe, as visões contrastan­tes e até mesmo opostas sobre o legado do mestre russo mostram o quanto a sua obra é complexa e o quanto continua atual, estimuland­o leituras e debates instigante­s como Bernardini propõe no seu livro. Mas a vida do escritor também é tratada com minúcia e conhecimen­to de causa, o que só enriquece a abordagem de sua arte, pois traz à tona uma questão muito oportuna nos dias atuais, a da censura, que influencio­u a feitura e a divulgação de suas obras-primas.

Na história da literatura russa, são muitos os autores (todos admiráveis) censurados pelo governo, e por conta disso, ao longo dos últimos séculos, grandes nomes foram presos ou emigraram para outros países, como se pode constatar no livro de Bernardini, que é muito informativ­o a esse respeito. Curiosamen­te, embora tenha sido condenado à morte pelo czar (o tiro fatal não foi dado, embora o escritor já estivesse amarrado a um poste), Dostoievsk­i, que viveu depois no exílio durante dez anos, terminou submisso a esse mesmo czar, como comenta a autora, que afirma: “Em seguida, contrariam­ente a Puchkin, que abominava a censura (tanto a de Alexandre I como a de Nicolau I), Dostoievsk­i, cabe mencionar, mantinha amizade estreita justamente com Pobedonost­sev, a expressão máxima da censura na época de Alexandre III”. Essa contradiçã­o enriquece a biografia do escritor e abre caminho para se verificar, ao longo dos estudos sobre autores clássicos e modernos, reunidos neste livro saboroso, como cada um deles reagiu aos implacávei­s censores russos de sua época.

Como sabemos, dois discípulos de Bernardini, Daniela Mountian e Valteir Vaz, selecionar­am os artigos da autora. Minha sugestão é que, quando da próxima edição do livro, solicitem a ela um ensaio (do qual senti falta) sobre o grande romancista russo Mikhail Bulgakov, autor de

O Mestre e Margarida, onde se revela, entre outras coisas, o papel do diabo na política, outro tema, a meu ver, muito oportuno.

É POETA, ENSAÍSTA E PROFESSOR DE LITERATURA NA UFSC. PUBLICOU, ENTRE OUTROS LIVROS, ‘A IDOLATRIA POÉTICA OU A FEBRE DE IMAGENS’ E ‘TRIO PAGÃO’, AMBOS PELA EDITORA ILUMINURAS Assim como fez o autor Vladimir Nabokov, a professora da USP Aurora Bernardini reúne em livro ensaios sobre Dostoievsk­i e outros clássicos

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO Lições. Aurora Bernardini desmonta mitos da terra de Gorki
 ??  ?? AULAS DE LITERATURA RUSSAAutor­a: Aurora Fornoni Bernardini Editora:Kalinka 464 páginas R$ 65
AULAS DE LITERATURA RUSSAAutor­a: Aurora Fornoni Bernardini Editora:Kalinka 464 páginas R$ 65

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