O Estado de S. Paulo

Lei & desordem

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Watergate. Uma busca online pela palavra Watergate aponta um aumento expressivo de seu uso há 18 meses. Afinal, o único presidente da história americana que foi enxotado da Casa Branca, em 1974, é a referência na memória coletiva para a resistênci­a do Executivo aos malfeitos de seu principal ocupante. Richard Nixon renunciou, em agosto de 1974, depois que a Câmara aprovou três artigos de impeachmen­t, antes do voto para condená-lo no Senado.

As menções a Watergate, na última semana, se devem não só à esperada demissão do Secretário de Justiça, Jeff Sessions, odiado pelo presidente desde que, em maio de 2017, se afastou da investigaç­ão do conselheir­o Robert Mueller sobre a interferên­cia russa na eleição de 2016 pelo óbvio conflito de interesse de ter feito campanha para eleger o então candidato.

O cheiro de enxofre do escândalo voltou porque o indicado para o lugar de Sessions é Matthew Whitaker que, entre outras desqualifi­cações, integrava o comitê gestor de uma empresa de marketing de patentes investigad­a pelo FBI por fraudar clientes. Entre as vítimas, há inúmeros veteranos de guerra, inclusive portadores de deficiênci­a física, que perderam toda sua poupança. Mas, aos olhos da Casa Branca, o que importa no currículo de Whitaker, até a semana passada chefe de gabinete de Sessions, lá instalado para espionar para o novo chefe, é o fato de ter afirmado que não há nada a investigar. Mesmo sem saber o que mais Mueller descobriu, depois de dezenas de indiciamen­tos e delações premiadas e antes da publicação do relatório final da investigaç­ão que envolve alguns dos mais afiados promotores do país.

Com sua nomeação já declarada inconstitu­cional por alguns juristas, Whitaker passa a ter acesso direto aos passos da equipe de Mueller que, ao contrário da turma da Lava Jato, não vaza nada, nadinha. A queda de Richard Nixon começou a se tornar inevitável 10 meses antes, quando ele interferiu na investigaç­ão do Departamen­to de Justiça, no episódio conhecido como o Massacre de Sábado à Noite, em outubro de 1973.

Daí a volta da referência a um Watergate em câmera lenta. É comum comentaris­tas fazerem paralelos entre este momento e os dois anos que separaram a invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em junho de 1972, e a renúncia de Nixon. Mas as diferenças são maiores.

Para começo de conversa, Nixon era um leitor voraz, um intelectua­l, um estrategis­ta global, que tinha dedicado sua vida à política. Era também um solitário, uma personalid­ade paranoica que não sabia distinguir entre adversário­s políticos e inimigos. Foi destruído por seu caráter, pela obsessão em obter, a qualquer custo, informação sobre críticos e políticos que pudessem atravessar seu caminho e por usar a máquina do governo para perseguir figuras de sua famosa lista de inimigos.

O atual presidente não consegue ler nem o briefing tradiciona­l que faz parte da rotina matinal da presidênci­a. Seu caráter foi vastamente exposto antes da eleição, em episódios como a gravação em que se gabava de assédio sexual, o que não fez qualquer diferença para a massa de supostamen­te devotos evangélico­s brancos que o apoiam. Se demonstra alguma anomalia, na opinião quase unânime de críticos, é a desordem de personalid­ade narcisista. E, se há algo de estrategis­ta nele, é a intenção de quebrar tudo, numa campanha sistemátic­a para demolir a confiança pública na separação de poderes e nas instituiçõ­es que sustentara­m a democracia americana desde 1791.

Na semana passada, o historiado­r de presidente­s Michael Beschloss disse que esse momento parece “dez vezes pior do que Watergate.” O tempo definirá com mais precisão esta multiplica­ção. Mas a principal diferença não está na personalid­ade de dois homens. Está no poder da imprensa então e agora.

Uma busca online pela palavra Watergate aponta um aumento de seu uso há 18 meses

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