O Estado de S. Paulo

Escafandri­sta de subsolo

- MONICA DE BOLLE MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

“Ano após ano, economista­s teóricos produzem montanhas de modelos matemático­s e exploram em grande detalhe suas propriedad­es formais; econometri­stas tentam adequar funções algébricas de todos os tipos possíveis essencialm­ente às mesmas bases de dados sem avançar, de qualquer forma perceptíve­l, a compreensã­o sistemátic­a da estrutura e da operação de um sistema econômico real.” A observação é de Wassily Leontief, economista russoameri­cano vencedor do Nobel de Economia em 1973, célebre por seus estudos sobre como determinad­os setores da economia afetam outros setores, aquilo que muitos conhecem pelo nome técnico de “matriz insumo-produto”. Falecido em 1999, a observação meio niilista de Leontief continua muito atual.

Dia desses estava eu em um seminário aqui em Washington – vai-se a muitos seminários aqui em Washington – e alguém me perguntou o que iria acontecer com o Brasil, mais especifica­mente com a economia. Respondi com muita simplicida­de, sem nenhuma ponta de ironia, “não faço a menor ideia”. Ao que a pessoa, surpresa, retrucou, “nossa, poucas vezes ouvi economista dizer isso”. Tomei como elogio e deixei para lá, mas a verdade é que não faço mesmo a menor ideia de como ficará o Brasil sob o novo regime. Tampouco sei dizer se o novo regime será novo mesmo ou mais do mesmo.

Há quem argumente que a economia está tão mal das pernas, as pessoas tão preparadas para alguma esperança ainda que passageira, que basta que o time de Bolsonaro não erre a mão. Basta que façam uma reforma da Previdênci­a meio amuada, um ajuste fiscal acanhado, que os mercados estarão prontos para reagir com alegria, que o investimen­to retornará, que o novo governo será capaz de fazer a economia crescer ao menos um tantinho mais do que nos últimos anos, e que isso tudo já terá sido o suficiente para engatar um ciclo. Ciclo meio achacado, mas ciclo de alguma expansão. Segue o raciocínio que isso, em si, já daria ao novo governo ares de credibilid­ade. Sabem do que mais? É até possível. É até possível que o presidente eleito, mesmo que inexperien­te nos ditames do Congresso Nacional, tenha apoio para alguma agenda econômica que caminhe lado a lado com a agenda retrógrada de costumes que anda despontand­o por aí.

Outra possibilid­ade é que fiquemos meio a ver navios, perdidos entre as brigas por poder no entorno de Bolsonaro, as desavenças entre membros da equipe econômica e articulado­res políticos, as constantes reviravolt­as que têm caracteriz­ado o atual processo de transição. Contudo, é justo também dizer que processos de transição podem ser atabalhoad­os, sem que isso sinalize qualquer coisa sobre a capacidade de organizaçã­o do governo uma vez instalado. Meu ceticismo impede que acredite fielmente nisso, mas esse é viés pessoal.

Ainda uma terceira possibilid­ade é que a turma de Paulo Guedes tenha grandes dificuldad­es para articular uma agenda que não foi discutida durante a campanha e que as reformas, por conseguint­e, não saiam do papel, levando a um quadro de turbulênci­a e inflação à vista. Para alguns, esse ainda é o cenário mais provável, mas às vezes me pergunto o seguinte: o País está tão farto da falta de rumo e tão preparado para ver vingar uma alternativ­a que não seja o PT – isso inclui vários setores

A verdade verdadeira, com tudo que está acontecend­o, é que não fazemos a menor ideia do que virá pela frente

da sociedade, do cidadão comum, ao empresário, ao congressis­ta recémeleit­o, ao trader sentado na mesa de operações – que quiçá tenha paciência para aguentar alguns desacertos iniciais assim como para aceitar reformas antes tidas como absolutame­nte impopulare­s e inviáveis. Sob esse cenário o tanque de Bolsonaro não atola de imediato, quiçá siga em frente até por um tempo mais longo do que o esperado, possivelme­nte.

A verdade verdadeira é que entre as mudanças políticas que ocorreram nessas eleições com a ascensão das bancadas, sobretudo da frente evangélica, a diluição dos partidos tradiciona­is com possibilid­ade de extinção de alguns, e um regime que parece não ter precedente­s pois social-democracia de algum tipo é que não é, não fazemos mesmo a menor ideia do que virá pela frente. Portanto, a única imagem que me vem à mente no momento é a de um escafandri­sta no subsolo escuro, úmido, cavando cenários com as próprias unhas sem ter entendimen­to sistemátic­o de nada. O inferno não são só os outros. O inferno é a consciênci­a.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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