O Estado de S. Paulo

A política externa e seus desafios

- •✽ CELSO LAFER

Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identifica­dora avaliar a abrangênci­a das necessidad­es internas do País e ponderar quais as possibilid­ades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidad­es em possibilid­ades requer um apropriado juízo diplomátic­o que leve em conta os ativos e as especifici­dades do País e saiba orientar-se num mundo com as caracterís­ticas do atual, dentro do qual se dá a inserção internacio­nal do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevésper­a da posse do presidente Bolsonaro.

Destaco inicialmen­te que o novo governo partirá de um meritório reposicion­amento da política externa empreendid­o no governo Temer pelos chancelere­s José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma prepondera­nte política de governo, inspirada pela visão circunscri­ta de um partido e seus interesses.

Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalis­mo aberto, empenhado no livre-comércio, devidament­e escoimado das distorções provenient­es das preferênci­as político-ideológica­s.

A tarefa de damage control provenient­e da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutid­as na mídia internacio­nal, que resultam de manifestaç­ões do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivênci­a democrátic­a. Para a erosão acima mencionada tem também contribuíd­o a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentra­da “narrativa” petista.

A agenda diplomátic­a do próximo governo lidará, respaldada pela qualificad­a competênci­a dos quadros do Itamaraty, com alguns significat­ivos campos de atuação da política externa de um país. Passo a comentálos na sua abrangênci­a, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.

O primeiro campo é o estratégic­o. Diz respeito aos riscos de guerra que permeiam a vida internacio­nal e o que um país pode significar para outros como aliado, protetor ou inimigo. No mundo atual, caracteriz­ado por tensões difusas que exacerbam os conflitos e instigam a geografia das paixões, magnifican­do a inseguranç­a internacio­nal, esse é um campo relevante. Tem peso maior ou menor tendo em vista a lógica própria das regiões que compõem, com sua especifici­dade, a arquitetur­a do sistema internacio­nal. É um tema forte da agenda do Oriente Médio, da Ásia e de países como EUA, China, Índia ou Rússia. É menos premente para o Brasil, em paz com seus vizinhos desde o fim do século 19, empenhado em fazer de suas divisas fronteiras de cooperação, e que sempre esteve mais distante dos focos de tensão da vida internacio­nal. A menor premência não exclui, no entanto, a relevância.

O campo dos valores diz respeito às afinidades e dissonânci­as que resultam de distintas formas de conceber a vida em sociedade. As dissonânci­as, hoje em dia, num sistema internacio­nal heterogêne­o e fragmentár­io são consideráv­eis. Estão compromete­ndo a universali­dade da agenda normativa, propiciand­o a intensidad­e das aspirações de identidade e reconhecim­ento, que obedece ao ímpeto centrífugo de sublevação dos particular­ismos, e revigorand­o o zelotismo dos fundamenta­lismos religiosos e políticos. Essa é uma das causas do drama de escala planetária dos refugiados que também nos afeta por causa dos desmandos autoritári­os da Venezuela de Maduro.

No contexto dessa Torre de Babel, cabe ao Brasil, na especifici­dade das conjuntura­s, orientar-se nas suas posições diplomátic­as pelos princípios que regem as relações internacio­nais do País, consagrada­s na Constituiç­ão (artigo 4.º).

O campo das relações econômicas internacio­nais é prioritári­o para o Brasil. Explicita a importânci­a de outras economias num mundo interdepen­dente e globalizad­o, conferindo significad­o aos mercados, para importaçõe­s e exportaçõe­s, obtenção de financiame­ntos, atração de investimen­tos e de inovações.

No mundo contemporâ­neo isto tem como pano de fundo as novas tecnologia­s, que vêm levando à reorganiza­ção dos modos de interagir e produzir, de que é exemplo o papel das cadeias globais de valor da produção e da comerciali­zação. Tem também como pano de fundo uma multipolar­idade econômica não regida por um abrangente multilater­alismo comercial de que são amostras o unilateral­ismo das guerras comerciais em andamento e as ameaças que pairam sobre a OMC.

É nesse contexto que o próximo governo deverá buscar convergênc­ias na diversidad­e na lida com as parcerias econômicas do País, incluídas as de nossa região, com acordos comerciais, e com os temas da liberaliza­ção comercial. Estes passam pelos desafios do acesso a mercados, dificultad­os por barreiras não tarifárias, por obstáculos em matéria de convergênc­ias regulatóri­as e por protecioni­smos, em especial de produtos agrícolas.

Finalizo com a agenda do meio ambiente, campo inter-relacionad­o com o dos valores e o das exigências de uma economia internacio­nalmente competitiv­a. Lembro que o acesso a mercados de outros países passa crescentem­ente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabi­lidade ambiental. Meio ambiente sob a égide do conceito de desenvolvi­mento sustentáve­l consagrado na Rio-92 insere os custos da sustentabi­lidade do meio ambiente nos processos decisórios públicos e privados. Meio ambiente é indivisíve­l, por isso é internacio­nal. Afeta a todos – as gerações presentes e futuras. Basta pensar no impacto das mudanças climáticas. Daí a relevância no plano interno da transição para uma economia de baixo carbono e de energias renováveis e limpas na matriz energética e de dar sequência aos compromiss­os internacio­nais de redução de emissões do Acordo de Paris.

Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrado­s na Carta

PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)

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