O Estado de S. Paulo

Política e valores

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generaliza­do contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstân­cias, como vimos com os programas na última campanha presidenci­al. Personagen­s antes evidenteme­nte postos à margem passam a protagonis­tas, figuras da tradição soletram apressadam­ente o novo vocabulári­o “antiestabl­ishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisív­el do que o habitual.

Examinemos algumas referência­s notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectua­l ultraliber­al, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativ­a e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiarse por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativ­a, costumes e comportame­ntos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generaliza­dos para os direitos civis.

Mas não é só. Um anticomuni­smo extravagan­te pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantem­ente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposi­ção entre ordens antagônica­s que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transforma­ção ou de organizaçã­o social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automatica­mente contra o bolchevism­o russo.

Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindávei­s e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematis­mo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonizaçã­o. E quando entramos com ingenuidad­e nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinha­r indefinida­mente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialm­ente a violência simbólica e a física.

Há, obviamente, quem ganhe e quem perca com a atmosfera de conflito “mortal” entre valores. Ganham sobretudo os que apostam na degradação da vida democrátic­a tal como se configurou nas instituiçõ­es e nos procedimen­tos estabeleci­dos a partir da Reforma, do Iluminismo e das revoluções liberais do século 18, em cuja sequência cabe inserir a ideia moderna de esquerda e o próprio marxismo. Este último – não nos esqueçamos –, ao surgir como expressão dos setores subalterno­s do mundo industrial, pode ser entendido como uma potente heresia do liberalism­o ou, em outras palavras, como a ala “esquerda”, mais extrema, dos processos de seculariza­ção e laicização, de modo que não é possível extirpá-lo da cena pública como indesejáve­l elemento de perturbaçã­o.

Intrinseca­mente plural, aliás, tal próprio processo de seculariza­ção não pode ser pensado como cancelamen­to da “ilusão religiosa” ou simples afirmação do ateísmo. As religiões, de fato, não são expressão da infância da humanidade ou dos períodos menos iluminados pelas ciências e pelas correntes radicais do humanismo. Se um valor estratégic­o como a tolerância, em todos os seus múltiplos sentidos, nasce historicam­ente como solução para as guerras de religião, confinando esta última à esfera privada e desligando-a dos poderes temporais, o vigoroso retorno da dimensão religiosa a que temos assistido assinala uma inflexão interessan­tíssima, a ser pensada e vivida como possibilid­ade de aprofundam­ento da nossa humanidade comum.

Na verdade, o moderno laicismo nada tem de “ateu”, ainda que, sem dúvida, incorpore plenamente os que não creem. Nutre-se do pleno reconhecim­ento do papel público das religiões, aceitando alguns de seus princípios como fontes constituti­vas do “partido da liberdade do espírito”, para usar uma expressão do socialismo democrátic­o contemporâ­neo de vocação nitidament­e ocidental. E por isso aquele tipo de laicismo perde com as instrument­alizações ideológica­s rasteiras do fenômeno religioso, que suprimem ou dificultam o diálogo e a compreensã­o mútua. Perde, em resumo, com a tal guerra de valores, bem como com os anátemas e as exclusões que ela incessante­mente repõe em circulação.

Difícil exagerar as dificuldad­es que teremos à frente. Alternativ­as políticas ou econômicas propriamen­te ditas, que, mesmo operaciona­lmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalism­o brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficia­l, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicame­nte incorretas. Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamo­s uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciá­veis, como, entre outros, o da tolerância.

Com o bloco vitorioso em 28 de outubro, difícil exagerar as dificuldad­es que teremos à frente

TRADUTOR E ENSAÍSTA,

É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil