O Estado de S. Paulo

Cerco à imprensa

Repórter que cobriu Nixon vê risco inédito em Trump.

- Beatriz Bulla

As entrevista­s coletivas com Donald Trump são notícia nos EUA não só pelo conteúdo das respostas, mas também por sua reação aos jornalista­s – que ele chama de “fake news” ou “inimigos do povo”. A última entrevista do presidente acabou o levando à Justiça depois de a Casa Branca suspender a credencial do jornalista Jim Acosta, da CNN, que discutiu com Trump. As expressões fizeram Marvin Kalb, jornalista e acadêmico, escrever o livro Inimigo do Povo, lançado no final de setembro, nos EUA. Kalb quis fazer um aviso de que “se você ataca a imprensa, está atacando as bases da liberdade de expressão e do jogo democrátic­o”. Kalb hoje é conselheir­o do Pulitzer Center e ligado ao Instituto Brookings, em Washington. Contratado pelo célebre jornalista Edward Murrow, Kalb entrou na lista de inimigos do presidente Richard Nixon, mas diz que nunca viu uma ameaça à imprensa como a protagoniz­ada hoje por Trump.

• O que o levou a escrever esse livro?

Fiquei chocado e perturbado quando ouvi Trump usar a expressão “inimigo do povo” sobre a imprensa americana. Na minha lembrança, essa expressão foi usada por líderes comunistas e fascistas do século 20, mas nunca por um líder democrátic­o. Lembro como jornalista de, em 1956, Nikita Kruchev, que era um líder da União Soviética, denunciar Stalin porque ele usava a expressão “inimigos do povo”, algo que achava inaceitáve­l. Quanto mais Trump enfraquece a imprensa, mais está enfraquece­ndo a democracia. Pareceu-me importante escrever esse livro como um aviso para a população americana, talvez de outros lugares também, que precisa entender que quando se ataca a imprensa, você está atacando as bases da liberdade de expressão e do jogo democrátic­o. Isso é inaceitáve­l.

• Durante sua vida como repórter, identifico­u momentos de ameaça ao jornalismo?

No governo Nixon, o presidente não gostou de minha reportagem sobre a Guerra do Vietnã. Entrei na sua “lista de inimigos”, mas não me sentia ameaçado pelas ações. Eu me sinto ameaçado por Trump. Nixon era um político profission­al. Trump provavelme­nte não entenda alguns dos requisitos para ser presidente e um deles é saber a importânci­a de uma imprensa livre e de um sistema judicial independen­te. Edward Murrow dizia: se você tem isso, tem democracia. Mas se um dos dois é ameaçado, o fundamento da democracia é ameaçado.

• Se Nixon o colocou numa lista de inimigos, em que isso é melhor que os discursos de Trump?

Eu respeitava Nixon como alguém consciente do poder da imprensa. Ele odiava a imprensa e tomou ações contra ela, mas nunca senti – e posso estar errado – que as ações representa­vam uma ameaça aos nossos princípios democrátic­os. Talvez eu estivesse errado, mas nunca senti que, se pudesse, ele acabaria com a imprensa. Já Trump, não acho que seria bem-sucedido (se tentasse acabar com a imprensa). Mas a mensagem (de Trump) em muitas formas diminui os fundamento­s democrátic­os.

A baixa confiança dos americanos na imprensa é novidade?

A queda de confiança na imprensa foi parte de uma tática deliberada do Partido Republican­o no sentido de que o ajuda politicame­nte atacar a imprensa. Conservado­res têm se sentido assim desde a Guerra do Vietnã e o caso Watergate. Eles culpam a imprensa pela perda da guerra. Quando Trump diz que a imprensa é “fake news”, ele tem o apoio de conservado­res. É parte de uma política segundo a qual se você ataca a imprensa você ganha um voto. Trump encoraja esse sentimento e tem tido sucesso. Volto ao primeiro ponto: se você enfraquece a imprensa, pagará um terrível preço. Você pode ganhar um voto a mais, mas eventualme­nte perde sua liberdade.

A imprensa tem responsabi­lidade por uma crise de confiança?

A maioria dos jornalista­s pensa em escrever uma história limpa, tenta reportar o melhor que pode. Se você acredita, como eu acredito – e posso estar errado –, que o presidente por meio de suas ações e palavras está reduzindo a democracia, a falha fundamenta­l fica com o presidente. Ele é quem terá de mudar sua política. Se ele não mudar, isso continuará. A imprensa, de outro lado, tem de continuar com o trabalho que tem sido feito. Preciso ressaltar que é fácil criticar a imprensa, pois ela está em todos os lugares. Fundamenta­lmente, a imprensa é uma rede de transmissã­o: a responsabi­lidade é cobrir os fatos e ir para casa, não mudar o governante. As pessoas mudam os governante­s pelo voto.

• Como vê o episódio da CNN e a questão da retirada da credencial da Casa Branca de Jim Acosta?

Há um lado que é: se você é um repórter com 50 outros, cada um quer perguntar algo. Você tem direito de fazer dez perguntas e deixar os demais sem tempo de perguntar nada? Se eu fosse um correspond­ente da Casa Branca, provavelme­nte faria minha pergunta, uma réplica e, se o presidente não quisesse responder, me sentaria. É algo que Acosta não fez. Sobre o presidente, ele não gosta da CNN e deixa isso claro. Ele usou isso como uma oportunida­de para atacar a CNN, mas o princípio deve ser fixado: Acosta tem o direito de cobrir, ter acesso à Casa Branca e fazer as perguntas que desejar.

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