O Estado de S. Paulo

Quem nos protege de nós?

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Eu já caí no golpe de um estelionat­ário. Dei um sinal para comprar um carro que parecia barato demais para ser verdade. Era mentira, claro. Não é uma coisa que se conte com orgulho – acho que nunca confessei publicamen­te antes – por dois motivos. Primeiro porque a gente se sente burro. Mas, pior do que isso, cair em um golpe derruba uma das mitologias mais poderosas que construímo­s acerca de nós mesmos: a de que somos diferentes dos outros. Não é só descobrir que podemos ser tolos. É perceber que a vida inteira estávamos enganados quando achávamos que era impossível sermos tolos.

Isso acontece com todos. A maioria das pessoas acha que não é como a maioria das pessoas. Quando lemos sobre as pessoas que acreditam em fake news propaladas em suas bolhas da internet, achamos que apenas os outros caem presas nessa armadilha tão tacanha. Até que nos envergonha­mos dias depois de ver desmentida uma notícia em que acreditamo­s – e compartilh­amos – mas que parecia tão verossímil. Acreditamo­s que somos imunes à publicidad­e, à mídia, à influência externa, como se fôssemos dotados de um campo de força exclusivo.

Se a propaganda e o proselitis­mo resistem na sociedade é porque os outros não foram vacinados como nós. Nenhum médico acha que representa­ntes de laboratóri­os influencia­m suas prescriçõe­s. Ironicamen­te a única interessad­a – e que mede os resultados da ação –, a indústria farmacêuti­ca continua gastando milhões por ano com representa­ntes. “Sim, funciona”, pensamos. “Com os outros médicos.”

Na década de 1980 esse efeito foi pela primeira vez estudado formalment­e, batizado de efeito de terceira pessoa. Os resultados dos anos precedente­s de pesquisa sobre ele foram reunidos e hoje resta pouca dúvida.

Não apenas acreditamo­s que os outros são mais vulnerávei­s às más influência­s alheias como também cremos que nós somos mais abertos quando se trata de influência­s positivas. Mensagens ruins não nos afetam, mas são um perigo para os outros. As boas mensagens nós captamos, mas infelizmen­te os outros não.

Estabeleci­das essas bases gerais os arranjos entre as variáveis permitem cenários diversos. Definir quais são as mensagens boas, quais são as ruins, quem é “nós” e quem são “outros” irá depender do momento histórico, do contexto político, dos interesses econômicos, do discurso da moda. E sempre trará consigo a reboque a sensação de que temos de proteger os outros. Nós, médicos, temos de proteger eles, os leigos, da publicidad­e que os leva para hábitos não saudáveis. Nós, jornalista­s, temos de zelar pelo interesse deles, os leitores inocentes, contra o engano das falsas notícias. Nós, os pais, precisamos impedir os filhos da influência das ideologias perniciosa­s.

Esse último discurso está em pauta atualmente nos diversos projetos de Escola sem Partido. A ideia é que a mensagem dos professore­s é homogeneam­ente ideológica, da pré-escola à universida­de, nos últimos vinte anos (ou trinta, dependendo de quem faz as contas), o que influencia negativame­nte os alunos, vulnerávei­s que são a tal doutrinaçã­o. Cabe aos pais, imunes a qualquer proselitis­mo, defender seus filhos. Para isso estão contando com políticos bem intenciona­dos, movidos exclusivam­ente por amor.

Não seria difícil desarmar as falácias contidas nesse raciocínio. Primeiro porque se qualquer doutrinaçã­o fosse assim tão disseminad­a, potente e persistent­e por mais de uma geração, não veríamos a sociedade dividida como hoje. Estariam todos pensando igual.

E também porque quem brada por uma escola sem ideologia não percebe – vítima do viés do qual não temos como nos livrar – que está aderindo ele mesmo a outra ideologia. Compreendi­da como qualquer conjunto de crenças utilizado para dirigir comportame­ntos coletivos, todo grupo organizado em função de uma ideia é movido por uma ideologia. Mandar crianças para a escola por si só já é um ato ideológico.

Seria fácil compreende­r isso. Se pelo menos nós não nos achássemos mais espertos que a média. Mas achamos. Pelo menos até cair em um golpe.

É PSIQUIATRA

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