Quem nos protege de nós?
Eu já caí no golpe de um estelionatário. Dei um sinal para comprar um carro que parecia barato demais para ser verdade. Era mentira, claro. Não é uma coisa que se conte com orgulho – acho que nunca confessei publicamente antes – por dois motivos. Primeiro porque a gente se sente burro. Mas, pior do que isso, cair em um golpe derruba uma das mitologias mais poderosas que construímos acerca de nós mesmos: a de que somos diferentes dos outros. Não é só descobrir que podemos ser tolos. É perceber que a vida inteira estávamos enganados quando achávamos que era impossível sermos tolos.
Isso acontece com todos. A maioria das pessoas acha que não é como a maioria das pessoas. Quando lemos sobre as pessoas que acreditam em fake news propaladas em suas bolhas da internet, achamos que apenas os outros caem presas nessa armadilha tão tacanha. Até que nos envergonhamos dias depois de ver desmentida uma notícia em que acreditamos – e compartilhamos – mas que parecia tão verossímil. Acreditamos que somos imunes à publicidade, à mídia, à influência externa, como se fôssemos dotados de um campo de força exclusivo.
Se a propaganda e o proselitismo resistem na sociedade é porque os outros não foram vacinados como nós. Nenhum médico acha que representantes de laboratórios influenciam suas prescrições. Ironicamente a única interessada – e que mede os resultados da ação –, a indústria farmacêutica continua gastando milhões por ano com representantes. “Sim, funciona”, pensamos. “Com os outros médicos.”
Na década de 1980 esse efeito foi pela primeira vez estudado formalmente, batizado de efeito de terceira pessoa. Os resultados dos anos precedentes de pesquisa sobre ele foram reunidos e hoje resta pouca dúvida.
Não apenas acreditamos que os outros são mais vulneráveis às más influências alheias como também cremos que nós somos mais abertos quando se trata de influências positivas. Mensagens ruins não nos afetam, mas são um perigo para os outros. As boas mensagens nós captamos, mas infelizmente os outros não.
Estabelecidas essas bases gerais os arranjos entre as variáveis permitem cenários diversos. Definir quais são as mensagens boas, quais são as ruins, quem é “nós” e quem são “outros” irá depender do momento histórico, do contexto político, dos interesses econômicos, do discurso da moda. E sempre trará consigo a reboque a sensação de que temos de proteger os outros. Nós, médicos, temos de proteger eles, os leigos, da publicidade que os leva para hábitos não saudáveis. Nós, jornalistas, temos de zelar pelo interesse deles, os leitores inocentes, contra o engano das falsas notícias. Nós, os pais, precisamos impedir os filhos da influência das ideologias perniciosas.
Esse último discurso está em pauta atualmente nos diversos projetos de Escola sem Partido. A ideia é que a mensagem dos professores é homogeneamente ideológica, da pré-escola à universidade, nos últimos vinte anos (ou trinta, dependendo de quem faz as contas), o que influencia negativamente os alunos, vulneráveis que são a tal doutrinação. Cabe aos pais, imunes a qualquer proselitismo, defender seus filhos. Para isso estão contando com políticos bem intencionados, movidos exclusivamente por amor.
Não seria difícil desarmar as falácias contidas nesse raciocínio. Primeiro porque se qualquer doutrinação fosse assim tão disseminada, potente e persistente por mais de uma geração, não veríamos a sociedade dividida como hoje. Estariam todos pensando igual.
E também porque quem brada por uma escola sem ideologia não percebe – vítima do viés do qual não temos como nos livrar – que está aderindo ele mesmo a outra ideologia. Compreendida como qualquer conjunto de crenças utilizado para dirigir comportamentos coletivos, todo grupo organizado em função de uma ideia é movido por uma ideologia. Mandar crianças para a escola por si só já é um ato ideológico.
Seria fácil compreender isso. Se pelo menos nós não nos achássemos mais espertos que a média. Mas achamos. Pelo menos até cair em um golpe.
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É PSIQUIATRA