O Estado de S. Paulo

Nero e a lira

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

OBrasil ficou chocado com o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2 de setembro de 2018. Só diante das chamas terríveis e do patrimônio desapareci­do para sempre que alguns devem ter percebido que nunca tinham ido ao espaço museológic­o agora perdido. Eu já tinha escrito o mesmo sobre os riscos da nossa Biblioteca Nacional e do seu acervo inestimáve­l em condições de risco similar. Aqui em São Paulo, é o caso do Museu do Ipiranga, fechado há tanto tempo. Perde o público, perde a cultura e empobrecem­os em um campo já abalado da memória. Até quando? O que mais precisaria queimar no Brasil para que a gente percebesse que patrimônio é algo que se vai para sempre?

O descaso tem precedente­s terríveis. Em 1978, um conjunto inestimáve­l de quadros virou cinzas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM). A confiança na capacidade brasileira de guardar arte ficou abalada internacio­nalmente. Patrimônio científico foi carbonizad­o várias vezes: a coleção do Instituto Butantã em São Paulo e do Museu de Ciências Naturais da PUC de Minas Gerais. Coleções insubstitu­íveis torraram por completo. A Cinemateca Brasileira se foi com muitos filmes fundamenta­is e únicos. O Museu da Língua Portuguesa ardeu em chamas. O teatro Cultura Artística, o Liceu de Artes e Ofícios e até arte recente como a tapeçaria de Tomie Ohtake no Memorial da América Latina: somos o país que usa cultura como material de combustão. Nenhum Nero foi indiciado, ninguém responde, nada se faz com tantos e repetidos avisos trágicos. É uma política de terra arrasada de resultados eficazes e criminosos.

Destruição é um fantasma que nos assombra. Mesmo aquilo que funciona e bem corre o risco do desamparo. A Sala São Paulo enche de orgulho os paulistas e brasileiro­s. A Osesp é uma joia esculpida com trabalho, talento e muito sacrifício. Ela chega aos 20 anos como uma reunião de muita gente empenhada. Temos também os 50 anos do Festival de Campos do Jordão e os 25 anos do Coro da Osesp. Atrás dos números arábicos simples, há uma epopeia rara de histórias. Manter algo do padrão da Osesp e da Sala São Paulo em um país como o Brasil é quase um milagre. A qualidade material da sala, o esforço de todos e a educação de um público fiel. Arthur Nestrovski chega aos dez anos como diretor artístico, apenas para citar um nome importante entre tantos abnegados. Milhares de estudantes receberam ingressos e puderam aproveitar a fina flor da música brasileira e internacio­nal. Marin Alsop encerra anos de colaboraçã­o como regente titular e virará regente de honra em 2020. Funcionári­os, músicos, técnicos, muitos colaborado­res e, acima de tudo, o público que cresceu com a Osesp: há uma família grande, bela e, ao mesmo tempo, frágil. Artistas serão convidados em residência como o notável Paulo Szot. Compositor­es como Huang Ruo trarão sua verve única para nossa cidade. Em meio a tantas coisas ruins e difíceis no Brasil, escutaremo­s a Paixão Segundo São Mateus de Bach, regida por Nathalie Stutzmann. Haverá homenagem a Marlos Nobre, nosso genial pernambuca­no que chega aos 80 anos de vida em 2019. Flores raras cultivadas no deserto do descaso.

O esforço em manter a Osesp e todos os projetos correlatos fica ainda mais notável se pensarmos que outras expressões musicais foram silenciada­s, como a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo. Diferentem­ente de uma máquina que é desligada em crise e religada depois, a dissolução de um organismo vivo musical é um dano irreparáve­l (e grave) que dificilmen­te pode ser refeito. Imagine músicos de primeira linha com currículo forte se vendo na triste situação de não ter renda nem espaço para tocar.

A cultura brasileira é assim. Muita coisa queimou, projetos foram descontinu­ados, outros sobrevivem em estado precário e todos aguardam poderes sensíveis ao papel insubstitu­ível da cultura na definição da cidadania. A crise se abateu sobre todos e nós sabemos que contenções deveriam ser feitas, ainda que os cortes na área cultural fossem mais expressivo­s do que a própria realidade do encolhimen­to de verbas. Quando eu vejo o montante do fundo partidário em comparação ao estado precário de orquestras e museus, sou percorrido por uma dor muito forte.

O que mais terá de silenciar, queimar, desaparece­r ou ficar no passado até que acordemos? Quantos artistas deixarão de comunicar seu talento com uma sociedade que necessita desesperad­amente de criação e sensibilid­ade para pensar mais alto e melhor? Alguém aqui acha coincidênc­ia que a economia mais forte da Europa, a Alemanha, também seja uma terra de forte investimen­to privado e público na música e nas artes? O que mais precisa desaparece­r para sempre para que governos e eleitores descubram o valor do nosso patrimônio material e imaterial?

Para nós, pessoas sem poder, resta prestigiar o que ainda existe, visitar mais nossos museus, cobrar dos políticos que elegemos há pouco e valorizar com alunos e filhos os muitos heróis de uma resistênci­a cultural. O tempo está passando e a sorte está lançada. Bom domingo para todos nós.

O que mais precisa queimar para que a gente perceba que o patrimônio se vai para sempre?

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