O Estado de S. Paulo

Passionári­a

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Um grupo de jovens do qual eu fazia parte (há muitos anos) entrou na posse de uma galinha viva. Não pergunte como. Levamos a galinha para a nossa mesa no bar de sempre com a intenção de matá-la e pedir para o seu Antonio, dono do bar, cozinhá-la. A galinha, sabidament­e um bicho nervoso, parecia resignada ao seu destino. Era uma galinha como qualquer outra. Classe média, um pouco avançada em anos, a doçura do olhar denunciand­o uma alma sem rancores. Era difícil imaginá-la dourando-se sob um fogo brando como uma ninfa de praia, ou trespassad­a sobre brasas como uma impúbere Joana D’Arc. Mas, numa panela, na companhia reconforta­nte de alguns legumes, não parecia um fim indigno para uma vida sem pretensões.

Antes de entregar nossa galinha ao seu Antonio, discutiu-se o “mise-enscène” do seu sacrifício. Alguém faria uma oração fúnebre? E o nome dela, como seria? Ela não podia morrer anônima como vivera. Fizemos uma votação – Janete? Lurdes? Lady Gagalinha (uma sugestão sonorament­e rejeitada) ? Finalmente, escolhemos um nome: “Passionári­a”. Algo a ver com seu porte espanhol. Como que energizada pelo nome, a galinha pulou para o centro da mesa. E fez mais. Mergulhou a cabeça num copo de chope. Deu três goles e levantou a cabeça envolta em espuma como um Papai Noel.

Imagine o espanto da mesa. Com um gesto, Passionári­a pulara da sua condição de presa e se tornara uma igual. O grupo devotava um carinho instantâne­o e incondicio­nal a quem gostava de chope. Como que pressentin­do o alcance da sua ousadia, a galinha repetiu a façanha, desta vez sacudindo o rabo no ar, numa clara demonstraç­ão de prazer. Depois, ela agradeceu os aplausos como uma bailarina, mas isso não precisam acreditar. Nascia ali uma onda de solidaried­ade, exigindo vida longa, chope e um lugar na mesa para a quase ensopada.

Houve protestos de quem já saboreava a galinha ao molho pardo do seu Antonio, mas os solidários com a “Passionári­a” insistiram em incorporá-la ao grupo. Decidiu-se fazer um plebiscito. A galinha ficaria aos cuidados do seu Antonio, com direito a chope e salgadinho­s, durante uma semana, nas quais os frequentad­ores do bar votariam: “Passionári­a” vive ou morre? Sinto dizer que a maioria votou pela sua morte. Mas quase ninguém conseguiu comê-la.

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