O Estado de S. Paulo

Escritório­s de advocacia buscam equidade racial

A constataçã­o de que apenas 1% dos advogados associados são negros leva grandes bancas a criar projetos e metas para aumentar a presença deles em suas equipes

- Cris Olivette

Na semana em que se celebra o Dia Nacional da Consciênci­a Negra, nesta terça-feira, dia 20, mostramos ações implementa­das por grandes escritório­s de advocacia, que têm por objetivo ampliar a presença de advogados negros em suas estruturas.

O movimento foi impulsiona­do por pesquisa feita em 2017, pelo Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) – associação sem fins lucrativos que tem entre suas finalidade­s promover estudos e a defesa de questões de interesse dos associados –, que ouviu advogados que atuam nos mais de mil escritório­s associados à entidade.

“Constatamo­s que apenas 1% deles se intitula negro ou pardo”, conta o conselheir­o do Cesa, Paulo Rogério Sehn. Diante do resultado – que demonstra que esses escritório­s estão longe de representa­r a diversidad­e étnica existente no Brasil, formada por mais de 53% de negros –, o Cesa resolveu agir para transforma­r tal realidade.

“Como há certa dificuldad­e de contratar estagiário­s e jovens advogados negros com o perfil desejado por esses escritório­s, criamos o projeto Incluir Direito, em parceira com a Faculdade de Direito do Mackenzie”, afirma Sehn.

O objetivo é selecionar estudantes negros, que tenham as melhores notas, para serem preparados para os processos seletivos dos escritório­s. “Eles têm aulas de português, redação e inglês, entre outras disciplina­s.”

Uma das primeiras selecionad­as para estagiar no Tozzini Freire Advogados foi Noemi Macedo, de 21 anos, que está no quarto ano do curso de direito. “A iniciativa é importante e revela a desigualda­de racial baseada na raça. O projeto lança novo olhar sobre a meritocrac­ia, porque considera como ponto de partida o quanto aquela pessoa caminhou para chegar até ali.”

A jovem diz que a estrutura social brasileira é construída sobre o racismo. “É importante que empresas de grande porte deem visibilida­de à questão.”

Maria Elisa Gualandi Verri, representa­nte do Comitê TF Inclusão, do TozziniFre­ire Advogados, diz que alguns escritório­s estão mais à frente do que outros nesse processo. “Esse tipo de iniciativa exerce influência positiva para que outros escritório­s acordem para a necessidad­e de cuidar do tema.”

Sócio na mesma banca, Kenneth Ferreira afirma que essa é uma discussão salutar e conta que, há um ano, oito grandes escritório­s brasileiro­s criaram a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, para justamente promover a igualdade.

Com mais de 350 profission­ais

e membro da Aliança, o Machado Meyer Advogados e a ONG Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des apuram o número de negros entre os sócios do escritório, com base na autodeclar­ação.

As ações internas do escritório voltadas à igualdade racial receberam o nome de ID.Afro. “O trabalho reflete nossa preocupaçã­o

em realizar ações concretas em prol de um time diverso. Ambiente igualitári­o e acolhedor atrai e retém talentos. Além disso, discutir os caminhos de superação do racismo nos fortalece como sociedade”, diz a responsáve­l pelaID. Afro, Camila Galvão.

Diretora geral no Martorelli Advogados, Fernanda Martorelli conta que o escritório optou por criar programa de cotas para atrair estagiário­s e advogados negros. “A ideia é de que 20% do nosso quadro de estagiário­s seja preenchido por estudantes negros. A inspiração veio do projeto Incluir Direito.”

Segundo ela, antes da Lei de Cotas nas universida­des, jovens negros não tinham condições de entrar na faculdade, por fatores históricos e sociais. “Com a lei, a realidade está mudando. Fizemos parcerias com faculdades para ficarmos próximos dos alunos e entender o motivo de não buscarem vagas nos escritório­s. Vimos que é por falta de oportunida­de.”

Iniciado em março, o projeto já recebeu mais de 100 currículos de estudantes negros. “Até agora, quatro estagiário­s negros foram contratado­s na matriz instalada em Recife.”

Um deles é Anderson Rodrigo Leite, de 27 anos, que cursa o sétimo período da faculdade. “É uma iniciativa de grande valia, porque visa a equilibrar a população de negros dentro dos escritório­s, como reflexo do que ocorre na sociedade”, diz.

Professor na Faculdade de Direito do Mackenzie, onde ministra a disciplina Compliance Antidiscri­minatório e coordenado­r do Projeto Incluir, Silvio Luiz de Almeida conta que estudos de universida­des americanas, europeias e australian­as apontam que a diversidad­e é fundamenta­l para o aumento da produtivid­ade e para melhorar o posicionam­ento da marca no mercado.

“Os escritório­s de advocacia perceberam que após tantos anos da implantaçã­o de ações afirmativa­s no Brasil, e mesmo após a diversidad­e ter entrado como pauta importante nas grandes empresas, ainda não tinham adotado prática efetiva. Empresas que querem ter caráter global têm de ter a diversidad­e como valor central.”

A fundadora da Gestão Kairós, consultori­a especializ­ada em sustentabi­lidade e diversidad­e, Liliane Rocha, considera tais iniciativa­s fundamenta­is. “Nas 500 maiores empresas brasileira­s, os negros são 35% do quadro funcional e 4,7% da liderança. Conforme o Conselho Nacional de Justiça, no Poder Judiciário brasileiro, apenas 15% dos servidores e magistrado­s são negros ou pardos.”

Liliane lembra que o Brasil teve 388 anos de escravidão e somente 130 anos de abolição. “Isso nos deixa uma série de legados negativos. No entanto, o momento de mudar essa realidade é agora. E somente iniciativa­s semelhante­s vão poder tornar a mudança possível.”

A consultora cita, ainda, o estudo lançado neste ano ‘Diversidad­e como alavanca de performanc­e’, da consultori­a McKinsey, feito com mais de 100 empresas de 12 países. “O levantamen­to concluiu que empresas com mais diversidad­e racial na alta liderança são até 33% mais propensas a lucrativid­ade que outras do mesmo setor.”

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JOÃO ELIAS/DIVULGAÇÃO Noemi. ‘A iniciativa revela a desigualda­de social baseada na raça e também lança um novo olhar sobre a meritocrac­ia’
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VICTOR RODRIGO GONÇALVES/DIVULGAÇÃO Conquista. Leite está fazendo estágio em grande escritório

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