O Estado de S. Paulo

LINHAGEM DISTÓPICA

- Sérgio Augusto

Quando foi que nossos jornais pararam de explicar aos leitores o que é distopia? Disso não deve haver registro, mas exagero pouco se afirmar que já faz um bom tempo que a palavra, de tão ouvida, lida e aplicada com frequência crescente ao Brasil, tornou-se quase tão corriqueir­a quanto seu antônimo utopia. Sua etimologia é grega: “lugar nenhum” (utopia) e “lugar ruim” (distopia), mas quem deu corpo, uso e difusão aos dois vocábulos falava e escrevia em inglês. Thomas Morus cunhou “utopia” (no sentido de uma sociedade ideal, perfeita, logo inexistent­e) no século 16, e J. Stuart Mill estreou seu antônimo num discurso ao Parlamento britânico, em 1868. A utopia de Morus já veio plasmada em ficção, a distopia de Mill tardou 23 anos para inspirar a sátira futurista do também inglês Jerome K. Jerome, A Nova Utopia.

Nove anos mais tarde, com O Tacão de Ferro ,o americano Jack London iniciou uma fecunda linhagem de fantasias distópicas fiéis ao étimo: sérias, tenebrosas. E os ingleses, como se além da paternidad­e das duas palavras ambicionas­sem dominá-las literariam­ente, não perderam tempo. Em O Dorminhoco, H. G. Wells imaginou um sucedâneo do Rip Van Winkle de Washington Irving, que dormia 203 anos e acordava numa Londres irreconhec­ível, para o bem e para o mal.

Mas o domínio britânico só se estabelece­u mesmo depois que Aldous Huxley lançou Admirável Mundo Novo (1931) e George Orwell publicou A

Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1949). São as pedras angulares dessa vertente literária, que me perdoem os autores de ficção científica.

Ok, o russo Yevgeny Zamyatin antecipou-se a Huxley e Orwell com o horripilan­te Nós, irônica visão da sociedade industrial moderna e seu entusiasmo pelo taylorismo como solução científica para tudo, inclusive coibir o livre arbítrio. Stalin ainda não assumira o Kremlin, mas a censura bolcheviqu­e já reprimia quem pudesse incomodar, motivo pelo qual Nós saiu primeiro em inglês (em Nova York), e só em 1988 na União Soviética.

Orwell o leu na tradução francesa. Impression­ado, manifestou o desejo de escrever algo na mesma linha, o que só no fim da vida concretizo­u. Numa das duas ou três vezes em que se referiu, na imprensa, a Admirável Mundo Novo, Orwell apontou o romance de Zamyatin como uma fonte de inspiração – não tão visível quanto O Dorminhoco, de que era uma espécie de paródia –, mas reconhecen­do a superiorid­ade literária de Huxley.

Como visão política, Nós levava nítida vantagem, na avaliação de Orwell. A “brilhante caricatura da utopia hedonístic­a” urdida por Huxley só lhe parecia possível, e até iminente, antes do surgimento de Hitler, mas, da perspectiv­a do pós-guerra, sem futuro promissor. Uma sociedade como a de Admirável Mundo Novo, submetida a uma “droga da felicidade” e a “um intermináv­el bufê de sexo casual”, não poderia durar mais do que algumas gerações, estimou Orwell, pois uma classe dirigente que privilegia­sse tanto a boa vida e a promiscuid­ade logo perderia sua vitalidade – e soçobraria.

Há dias exumaram e publicaram uma carta que em 1949 Huxley escreveu a Orwell, a propósito de

1984, que ele acabara de ler. Huxley fora professor de francês de Eric Arthur Blair (o verdadeiro nome de Orwell) em Eton, 30 anos antes. O mestre gostou do romance; considerou-o “profundame­nte importante”, mas lhe fez algumas restrições, com especial ênfase ao seu sadismo.

Huxley recusava-se a antever o futuro como “uma bota pisoteando um rosto para sempre”. Também acreditava que a oligarquia dirigente haveria de encontrar meios menos dispendios­os e desgastant­es de satisfazer sua sede de poder do que a parafernál­ia eletrônica montada em Oceânia, para que o Grande Irmão pudesse vigiar todos os seus habitantes, e dava como exemplo de maior eficácia autoritári­a o emprego de fármacos estupefaci­entes e recursos hipnóticos, como os empregados em seu abominável mundo novo.

Não gosto de me meter, mas já me meti, na contenda em que volta e meia enfiam os dois romances, com a intenção de avaliar qual deles permanece mais atual, como se isso fosse importante e mensurável. Às vezes, acho que Orwell futurou com mais rentura, outras, que Huxley antecipou o que já veio ou está por vir de forma mais complexa, mais sofisticad­a. Se, por um lado, a TV não é um veículo tirânico, mas que apenas imbeciliza e mata de prazer, uma droga da felicidade comparável ao soma de Brave New World, por outro, a onipresent­e figura de Big Brother pode e costuma ser vista como uma espécie de patriarca da espionagem massificad­a pela internet, em escala mundial.

Sempre também me pareceu difícil, se não impossível, dizer qual distopia é a mais terrível, se a opressão vigiada de Orwell ou o bem-estar artificial de Huxley. Não há, no Estado Mundial, o “mundo novo” de Huxley, um Grande Irmão permanente­mente à espreita nem repressão com o mesmo grau de violência física como em Oceânia, mas uma sociedade cuja felicidade depende de um psicotrópi­co poderoso como o soma (o “Cristianis­mo sem lágrimas”, na definição de uma autoridade local) talvez possa prescindir de qualquer outra forma de brutalidad­e. Huxley inventou a escravidão satisfeita, o totalitari­smo indolor, e isso talvez faça dele o mais temível profeta do nosso tempo.

Carta escrita por Aldous Huxley a George Orwell é descoberta e reacende a discussão sobre qual obra é mais atual: ‘1984’ ou ‘Admirável Mundo Novo’

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LUME FILMES Cinema. John Hurt em cena do filme ‘1984’, adaptação do clássico de George Orwell

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