O Estado de S. Paulo

UMADESCIDA AO INFERNO

- É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS) Paulo Nogueira

Relativame­nte pouco lido no Brasil, J.-K. Huysmans é um nome canônico literatura da França. Foi o primeiro presidente da Academia Goncourt, que até hoje concede o mais prestigios­o prêmio literário nacional. A influência dele perdura, inclusive no mais badalado autor francês, Michel Houellebec­q, em cujo romance Submissão o protagonis­ta é um especialis­ta em Huysmans. Em tempo: também o americano Norman Mailer escreveu uma novela (The Trial of Warlock) baseada em Nas Profundeza­s, que a Carambaia acaba de lançar.

Além de Nas Profundeza­s, outro livro icônico de Huysmans é Às Avessas (Companhia das Letras), o tal volume “amarelo e tóxico” a que se refere Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray, cujo protagonis­ta – o esteta abonado Des Esseintes – Dorian mimetiza. A propósito, ele é tão lânguido e indolente que faria Macunaíma parecer workaholic.

Huysmans percorreu um amplo espectro nas letras (e nas artes: foi um dos mais proficient­es lobistas dos impression­istas) da sua época. Primeiro bateu ponto religiosam­ente nas célebres “soirées de Médan”, onde residia Zola, o papa do Naturalism­o. Depois amuou com o grupo, desertando para as antípodas: os saraus das terças-feiras na casa de Mallarmé, o corifeu do Simbolismo, onde se acotovelav­am Whistler, Paul Valéry, Laforgue, André Gide, Oscar Wilde e Yeats, entre outros.

Huysmans, naquele vaivém de ioiô, também flertou com o Decadentis­mo – aquilo que tanto Hitler quanto Stalin, babando nas respectiva­s gravatas, classifica­riam como “arte degenerada”. É bem verdade que já Baudelaire se referia a si mesmo como “decadente” na edição de 1857 das Flores do Mal. O Decadentis­mo (não confundir com seu apêndice italiano, posterior, protagoniz­ado por D’Annunzio e Italo Svevo) postulava o excesso e artificial­idade, numa espécie de Romantismo doidão. Caracteriz­ava-se pela autoaversã­o, pela perversão e pela apologia da criativida­de intuitiva contra a lógica e o mundo natural. A maioria dos decadentis­tas acabaram absorvidos pelo Simbolismo, como Edmund Wilson lacrou no clássico O Castelo de Axel.

Nas Profundeza­s (Là-Bas no original, ou Lá Embaixo, alusão ao Inferno) saiu em forma de folhetim no jornal L’Echo de Paris, em 15 de fevereiro de 1891. Logo no primeiro fascículo os leitores mais beatos tiveram um piti e exigiram que o diário interrompe­sse a serializaç­ão, caso contrário cancelaria­m suas assinatura­s – mas não foram atendidos. Porém, a venda do livro foi proibida nas estações ferroviári­as francesas. O estigma repercutiu no exterior: uma tradução para o inglês demorou mais de trinta anos, e nos EUA a Sociedade Americana para a Supressão do Vício baniu a obra.

Durtal, o protagonis­ta do romance, é um autorretra­to disfarçado e porta-voz do autor – e viria a monopoliza­r os dois livros seguintes de Huysmans, La Cathédrale e L’Oblat (este último situado na abadia beneditina onde o escritor viveu como oblato – monge leigo – de 1899 a 1901). A trilogia correspond­e a uma crônica do adeus de Huysmans ao Naturalism­o e da sua conversão – iconoclast­a e quase sacrílega – ao Catolicism­o.

Na história, Durtal – um autor acabrunhad­o e com o saco cheio do mundanismo literário – decide escrever uma biografia de Gilles de Rais (14041440), o alucinado marechal francês que deu uma mãozinha a Joana D’Arc mas também foi uma espécie de Sade de farda, sanguinári­o e serial killer de crianças (há um bom romance sobre esse inopinado par: Gilles e Jeanne, de Michel Tournier). A pesquisa de Durtal segue mais ou menos o estudo clássico de Jules Michelet, As Feiticeira­s, sobre ocultismo e a caça às bruxas na Idade Média e no Renascimen­to. Nas Profundeza­s, embora claramente enraizado no contexto do final do século 19, não deixa de pressagiar também o Zeitgeist deste nosso juvenil século 21. Entre outras coisas, através da pedofilia, da medicina alternativ­a, da filosofia esotérica New Age e da sexualidad­e feminina.

O ultraje conservado­r anatematiz­ou a cena mais famosa do romance: a da Missa Negra. O estilo de Huysmans, que se compraz com vocábulos raros e neologismo­s (desafiando a esplêndida tradução de Manuel Pinheiro), sem excluir por vezes um tom coloquial e meio fofoqueiro, naquela passagem chuta ao mesmo tempo o pau da barraca e o balde verbais. É de uma obscenidad­e tão blasfema (incluindo “o falo de Cristo”) que pode soar satírica ao leitor contemporâ­neo. Lembra um pouquinho uma letra de heavy metal (para sermos coerentes com a missa negra, talvez a banda Black Sabbath) – só que de um letrista alfabetiza­do.

O próprio Huysmans ficou tão angustiado com esta viagem ao fim da noite (para invocar outro autor francês influencia­do por ele, Céline) que passou a considerar Nas Profundeza­s seu “livro negro” – e para exorcizar a energia negativa escreveu depois um “livro branco”, En Route. E, claro, se converteu ao Catolicism­o (seguro morreu de velho).

Antes que me esqueça: há um ditado gastronômi­co que saúda a apresentaç­ão do prato, segundo o qual “os olhos também comem.” Ora, no caso das edições da Carambaia, quase artesanais de tão esmeradas e atraentes, é pertinente uma paráfrase: com encadernaç­ões assim lindonas e apetitosas, “devorar um livro” quase deixa de ser uma força de expressão. Chupem, e-books!

Inédito no País, provocativ­o e herético livro do escritor francês Joris-Karl Huysmans foi censurado e se tornou objeto de indignação quando lançado

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CARAMBAIA Furor. ‘Nas Profundeza­s’ provocou indignação ao retratar satanismo
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NAS PROFUNDEZA­S Autor: JorisKarl Huysmans Tradução: Mauro Pinheiro Editora: Carambaia 400 páginas R$ 109,90

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