O Estado de S. Paulo

A FLUIDEZ E O RIGOR DE PAULO HENRIQUES BRITTO

- Marcelo Tápia

Tudo dá em nada. Apenas a decepção “é o que há em matéria de sentido”. Mas “Não há glória maior / que a conquista do nada”: um objetivo que o poeta Paulo Henriques Britto almeja e obtém em seu livro Nenhum Mistério, feito de uma espécie de “música secreta”, ainda que “fale” com certa fluência coloquial. Como usar o tom confession­al sem permanecer no âmbito do próprio umbigo? A poesia de Britto constrói seu universo, embora sua motivação provenha, aparenteme­nte, de uma visão das coisas resultante de uma história de vida; nesse universo poético, questões fundamenta­is da existência adquirem voz, mas não apenas como comentário­s sobre experiênci­as: os poemas se fazem, eles mesmos, vivências em torno de um modo de ver o que nós podemos esperar: o nada.

Trata-se de uma educação, não pela pedra, sequer pela presença de uma coisa, mas – ao menos em princípio – pela ausência: “Aprender enfim / a cruel lição: / a que só se aprende / por subtração: // a que não saber não é desvantage­m / pois nem sempre é ganho / uma aprendizag­em )”. Vale a pena a consciênci­a da lição de perda? Ou vale a lição da própria consciênci­a, “peso morto / que acusa o golpe sofrido/ e cochicha ao pé do ouvido/ depois que o fato se deu:/ nada que te pertence é teu”?

O vazio da descrença na posse de algo aponta para “Nenhuma arte”, que não abole a dúvida (como se pode ver no poema com esse título): “Os deuses do acaso dão, a quem nada / lhes pediu, o que um dia levam embora; / e se não foi pedida a coisa dada / não cabe se queixar da perda agora. / Mas não ter tido nunca nada não / seria bem melhor – ou menos mau? / Mesmo sabendo que uma solidão / completa era o capítulo final, / a anestesia valeria o preço? / (Rememorar o que não foi não dá / em nada. É como enxergar um começo / no que não pode ser senão o fim. / Ontem foi ontem. Amanhã não há. / Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

Noções como essas evocam a poesia de Fernando Pessoa quando esta focaliza a falta de consciênci­a associada à felicidade: “Ela canta, pobre ceifeira, / Julgando-se feliz talvez; / Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciên­cia, / E a consciênci­a disso! Ó céu! ” (Cancioneir­o). Associar a consciênci­a à felicidade, a descrença à necessidad­e de seguir fazendo é, por um lado, possibilid­ade desacredit­ada; por outro, no dizer de Britto, não há como não “Permanecer aqui, / apesar e além. / Estar, mesmo assim, / mesmo sem”.

Reinscreve-se, em outro plano, o horizonte drummondia­no da “vida besta” e do estado geral de descrença e derrota da ilusão: mesmo para quem “detesta / a inútil narrativa” dessa história sem mistério, cujo final – como se sabe “desde o início – / é banal, / melancólic­o, besta / e isento de moral”, não há alternativ­a senão buscar “um mal preciso” para “o remédio já encontrado”, “Pois é mister que se aproveite / o que se tem, por mais daninho, / que da pedra que há no caminho / se extraia o leite”. Prosseguir é inevitável: “a esta altura, desistir / não é mais uma alternativ­a: / o fracasso se tornou / a própria textura da vida”.

A falta de sucesso – e a falta, de modo geral, – convertem-se em presença: textura da vida. O ato de reverter o abismo, atribuir um valor (ou sinal) ao nada, dirige-se ao que virá em determinad­a ordem de criação, a um sentido que se segue a partir de um princípio, ao que se torna positivida­de: “Os dias / vêm antes das noites, não depois ”; se “Todas as coisas que existem no mundo / fazem sentido ”, “Ficam sem efeito as contradiçõ­es / todas ”.

Apesar de tudo, ou do nada, fazer: no caso de Nenhum Mistério, fazer com feições nítidas: os poemas são bem demarcados formalment­e, elaborados com a consciênci­a do ritmo e do metro, e de se tirar proveito deles para a ideia, assim como de outros recursos da poética. Há predominân­cia, no conjunto, do uso da métrica uniforme; encontram-se versos decassílab­os, por vezes com acentuação regular, como no jâmbico “Seria igual se fosse diferente”; hexassílab­os como estes, também com acentuação uniforme: “Tempo agora perdido / (todo tempo se perde) / vivo só nos vestígios”. Há, também: redondilho­s maiores – “Não se fazem mais lembranças / como as de antigament­e”; redondilho­s menores – “pois não há teoria – / só práxis – da ausência”; octossílab­os – “Palavra perdida no fundo / do corpo entre sonho e lembrança”; eneassílab­os, como “falsos começos, fins em aberto”, feito de dois tetrassíla­bos com igual disposição de sílabas tônicas; etc. Há poemas que combinam metros diversos, com critérios depreensív­eis, como o que associa versos de dez, oito, seis e quatro sílabas (a parte II do poema que dá título ao livro); há os que se valem da métrica para incorporar sentido, como no caso de Muro, no qual a quebra na palavra refere-se metalingui­sticamente ao que se diz: “Serve qualquer material / que seja sólido e rígido, / capaz de criar desconti- / nuidade no mundo físico”.

Por meio do uso coerente de recursos tradiciona­is, inserido no contexto contemporâ­neo, o livro de Paulo Henriques Britto mostra-se, a este leitor, como um maduro trabalho de mestre, que incorpora referência­s e repertório­s múltiplos e opta por manter-se num espaço formal definitiva­mente decantado, como sedimentaç­ão do encontro da fluidez com o rigor, da oralidade efêmera com a escrita perene, da significaç­ão imediata (ainda que etérea) com as significaç­ões decorrente­s da apreensão posterior dos sentidos que se desdobram.

É POETA E ENSAÍSTA, DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA PELA USP

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GUSTAVO MIRANDA/AGÊNCIA O GLOBO Poeta. Britto usa recursos tradiciona­is em contexto atual com coerência
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