O Estado de S. Paulo

MEDO O ENREDO DO

- Norman Gall DIRIGE O INSTITUTO FERNAND BRAUDEL DE ECONOMIA MUNDIAL EM SÃO PAULO

Os brasileiro­s mergulham num enredo do medo, com transições acima de transições, em eleição após eleição. Os políticos tendem a ser os mesmos, excessivam­ente protegidos, garantindo seus lugares por artimanhas jurídicas. O medo aprofundou com o estouro da Lava Jato, um dos maiores escândalos de corrupção sistêmica na história da civilizaçã­o ocidental. A única saída do enredo do medo é fortalecer nossas instituiçõ­es.

Quando os EUA tocaram fundo na Grande Depressão, em 1933, o novo presidente Franklin Roosevelt advertiu: “Nâo há nada a temer além do próprio medo”. Roosevelt mobilizou o país para criar um New Deal e aliviar o medo do povo com novas políticas econômicas e sociais. Onde está o Novo Acordo no Brasil?

Surgem outras perguntas: Por que nossa economia está estagnada há anos? Por que há pouco investimen­to público? Por que tanta corrupção? Por que tantos assassinat­os? Por que as escolas ensinam tão pouco? Por que os jovens mais qualificad­os migram para outros países? Por que nem a sociedade nem a classe política geram novas propostas para enfrentar esses desafios? Por que o Brasil resiste a mudanças estruturai­s num sistema político dilapidado pelos incentivos perversos e a corrupção endêmica?

Jair Bolsonaro, o presidente eleito, surgiu como Anjo Vingador, sem roteiro ou programa definido, no legado de escândalos e confusão que rondava a campanha eleitoral de 2018. Surfava na crista duma onda de medo e ressentime­nto provocada pela recusa dos brasileiro­s de assumir limitações e escolher metas de longo prazo Após o atentado de 6 de setembro, em que Bolsonaro foi esfaqueado, o jornal francês Le Monde, num editorial intitulado O Naufrágio de uma Nação, observou que a sociedade brasileira se sente abandonada: “As balas perdidas massacram crianças em favelas dominadas por facções criminosas. Líderes da sociedade civil assassinad­os nas ruas em plena luz do dia. Uma classe política velha e lastimável, minada pela corrupção. Nesse ambiente nocivo, o incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio aparece como símbolo da negligenci­a do Estado. Há quem que fale em suicídio de uma nação.”

Reportagen­s detalhadas de Leonencio Nossa no Estado relatam 1.269 assassinat­os políticos entre 1979 e 2018, dois terços deles no Nordeste e na Amazônia. Em 2017 foram registrado­s 63.880 homicídios no Brasil, 175 por dia, ou 31 para cada 100 mil habitantes, uma taxa um quarto maior que no México (25) e seis vezes maior que nos EUA (5).

Após um a campanha cheia de surpresas, Bolsonaro deu outra: nomeou como superminis­tro da justiça o jovem juiz Sérgio Moro. Ele terá um cardápio impression­ante de desafios: cuidar de penitenciá­rias, imigração, fronteiras, Judiciário, os diferentes corpos policiais e inteligênc­ia sobre crime organizado, conduzindo a nova fase do país.

No passado, não faltaram iniciativa­s para superar os problemas institucio­nais. O Brasil procurou soluções nos governos de Getúlio Vargas (193045/ 1950-54) que, entre outras coisas, avançou a modernizaç­ão das estruturas do Estado e a expansão dos diretos sociais. O Brasil procurou soluções no governo de Juscelino Kubitschek (1956-60), que desenvolve­u laços em infraestru­tura numa escala continenta­l na implantaçã­o de hidrelétri­cas, telecomuni­cações e estradas, além da construção da nova capital, Brasília, no sertão de Goiás. O

Brasil procurou soluções no governo militar de Ernesto Geisel (1974-79), achando jazidas gigantes de petróleo no oceano e abrindo o Centro Oeste para o desenvolvi­mento agrícola dos Cerrados. O Brasil procurou soluções no governo de FHC (1994-2002), que interrompe­u a escalada da inflação crônica e estabelece­u as bases legais para a estabilida­de democrátic­a que, infelizmen­te, ainda nos ilude. Esses governos tiveram seus erros e defeitos, mas mostraram claros propósitos que nos faltam hoje. O Brasil também procurou soluções no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10), no seu início, reforçando direitos sociais em um quadro de estabilida­de fiscal, enquanto criou o escândalo da Lava Jato, atingindo várias repúblicas da América Latina e África e enfraquece­ndo a legitimida­de do regime democrátic­o no Brasil.

As distorções na economia política do Brasil brotam de raízes profundas. É antiga a cultura de parasitism­o fiscal que drena forças da economia e do sistema político, expandindo radicalmen­te nas últimas décadas. Em sua grande obra, Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro

(2000), Raymundo Faoro observa sobre a sociedade colonial: “A soberania popular funciona às avessas, numa obscura e impenetráv­el maquinação de bastidores, sem o efetivo concurso da maioria, reduzida a espectador que cala ou aplaude.”

Nas últimas seis décadas, começando com o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, quatro dos sete presidente­s eleitos pelo povo não puderam cumprir seu mandato. Dois deles, Fernando Collor e Dilma Rousseff, sofreram impeachmen­t. Só Lula conseguiu promover a eleição de um sucessor, nesse caso Dilma Rousseff. O mais brilhante, Juscelino Kubitschek, não procurou um sucessor apto para cuidar da estabilida­de institucio­nal, deixando como herança os fracassos de Jânio Quadros e João Goulart e os 21 anos de regime militar.

O regime democrátic­o no marco da Constituiç­ão de 1988 mostrou muita vitalidade. Nas últimas três décadas, realizamos sem interrupçã­o oito eleições nacionais (para presidente, governador­es e poderes legislativ­os) e sete eleições municipais, uma série histórica de estabilida­de política nunca antes atingida no Brasil. Nessas três décadas, a inflação anual caiu de mais de 5.000% em 1992 para 4,5% em 2018, enquanto a taxa de câmbio do real estabilizo­u. Houve grandes aumentos nos padrões de consumo e nos níveis de escolarida­de da população, ainda com qualidade fraca no ensino.

Os padrões de qualidade institucio­nal vão definir o futuro da democracia. Na campanha eleitoral de 2018, ouvimos pouco sobre os problemas institucio­nais que brotam do parasitism­o fiscal. O povo brasileiro exige manter privilégio­s de estabilida­de sem pagar as contas. Tem tudo para todos, tudo para os ricos e tudo para os pobres, mas não sobra nada para investir no futuro, nem para conservar a infraestru­tura básica que herdamos do passado. Por isso a economia fica paralisada e não realiza seu potencial. Sem base financeira e produtiva para sustentar tantas benesses, o Brasil fica ameaçado pela volta da inflação crônica. O Brasil sofreu queda na renda per capita enquanto o PIB mundial cresceu em 40% desde 2010. Agora o Brasil precisa enfrentar essa estagnação, já com altos níveis de endividame­nto público e privado, sem uma estratégia coerente anunciada.

Uma análise dos caminhos que o Brasil tomou nas últimas décadas e das possíveis saídas para problemas que assolam o País em diversos segmentos

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DIDA SAMPAIO/ESTADÃO Progresso. Prédio do Congresso Nacional iluminado de azul durante o Dia da Água

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