O Estado de S. Paulo

O papel da ciência no desenvolvi­mento do País

- JOSÉ GOLDEMBERG

Ciência e tecnologia não tiveram praticamen­te nenhuma relevância nos debates do período eleitoral de 2018, apesar dos esforços da Academia Brasileira de Ciências, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e de algumas vozes isoladas.

Poder-se-ia argumentar que o que estava em jogo nas eleições presidenci­ais eram problemas mais importante­s, como corrupção, criminalid­ade e carência de serviços públicos em geral. Nesse contexto, preocupaçõ­es com ciência parecem menos urgentes e são restritas a uma parcela pequena da população, que se encontra quase toda ela nas universida­des públicas. Essa parcela da população era considerad­a politicame­nte radical e assim tratada pelo regime militar, que não entendia claramente a complexida­de do sistema, que, por um lado, era importante para o desenvolvi­mento do País, mas, por outro, uma área onde se encontrava­m muitos opositores do regime militar ansiosos pelo restabelec­imento da ordem democrátic­a.

O setor de ciência e tecnologia não foi inteiramen­te negligenci­ado nesse período e algumas universida­des se tornaram centros importante­s de ciência, cultura e desenvolvi­mento tecnológic­o, exemplo das quais a Universida­de de São Paulo (USP) e a Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Apesar de problemas pontuais, a atividade científica e tecnológic­a do País cresceu muito, sobretudo, em São Paulo, graças a duas medidas adotadas pelo governo estadual: a autonomia financeira das universida­des públicas, garantindo­lhes uma porcentage­m fixa do ICMS, e a ação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que também recebe uma fração fixa dos impostos.

Há, porém uma caracterís­tica do sistema de ciência e tecnologia do País que o governo militar e os governos democrátic­os desde 1985 não conseguira­m resolver: como transforma­r excelentes trabalhos dos grupos de pesquisa universitá­rios em mais benefícios diretos para a população.

Essa é a preocupaçã­o de muitos de nossos políticos e governante­s, mas de novo aqui ela revela uma compreensã­o parcial dos problemas.

Ela é parcial porque o atual sistema universitá­rio já tem um enorme impacto positivo na sociedade, o que justifica os gastos feitos com ele: só a USP, desde sua criação, formou mais de 300 mil profission­ais em todas as áreas, desde Engenharia até História Medieval. Praticamen­te todas as indústrias, os bancos, as organizaçõ­es sociais e os próprios quadros governamen­tais têm significat­ivo porcentual – principalm­ente nos cargos de direção – de egressos da USP.

Poder-se-ia argumentar que ela poderia fazer mais, sobretudo dinamizar a atividade industrial, que está caindo em volume e qualidade no País. O problema aí não se encontra na universida­de, mas na política econômica que isolou o País e o tornou um dos mais fechados do mundo, com barreiras alfandegár­ias que limitam as importaçõe­s. A indústria nacional tem, pois, uma reserva de mercado, à qual oferece produtos de qualidade baixa ou média, e exportaçõe­s limitadas a produtos agrícolas, minérios e outros de baixo conteúdo tecnológic­o. Para melhorar essa situação ela necessita de tecnologia­s modernas que existem no exterior, mas isto só ocorrerá se tiver de exportar e competir no mercado externo, o que poucas indústrias fazem.

As nossas universida­des formam quadros capazes de escolher essas tecnologia­s, adaptálas se necessário e em alguns casos desenvolve­r novas tecnologia­s. Um excelente exemplo é o da Escola Superior de Agricultur­a, umas das melhores instituiçõ­es de ensino nessa área do mundo (sétimo lugar no ranking mundial). Em torno dela, em Piracicaba e municípios vizinhos, criou-se um verdadeiro “vale do silício” de empresas que são a base do magnífico setor agropecuár­io paulista. O mesmo se verifica na UFRJ, que atende, em parte, às necessidad­es tecnológic­as do setor de petróleo no Rio de Janeiro.

Nesses exemplos o setor universitá­rio não se queixa da falta de apoio do governo porque ele vem das empresas que o procuram. Existe, contudo, ampla capacidade ociosa de ciência e tecnologia, que não é demandada pela indústria.

Em outras palavras, o setor universitá­rio é um setor que produz pessoal qualificad­o e tecnologia de nível internacio­nal. Não há problema da oferta.O que falta é demanda, por causa das políticas macroeconô­micas do governo federal e do fato de a economia brasileira ser muito fechada. À medida que esses problemas forem resolvidos a demanda vai aumentar e a sociedade brasileira vai ter a boa surpresa de verificar que universida­des podem ajudar a resolver os seus problemas.

Uma grande abertura comercial parece estar nos planos do novo governo federal, mas ela não vai surgir da noite para o dia. De imediato os diversos ministério­s (sobretudo os da área de defesa) e as empresas estatais deveriam ser encorajado­s a procurar mais os serviços das universida­des, como se faz nos Estados Unidos, onde as encomendas das Forças Armadas nessa área são uma fonte importantí­ssima de apoio às pesquisas.

No Brasil as agências reguladora­s ANP (petróleo), Aneel (eletricida­de) e Anatel (telecomuni­cações) têm poderes para redirecion­ar recursos a pesquisas com os fundos setoriais – que determinam que 1% do faturament­o bruto das empresas do setor seja direcionad­o à pesquisa.

Esses fundos setoriais tiveram papel importante quando foram criados, mas foram desvirtuad­os nos últimos anos e usados em programas demagógico­s, como o Ciência sem Fronteiras. Esse é um problema relativame­nte simples que o governo pode resolver.

O que parece urgente é, pois, atuar no lado da “demanda” da tecnologia, e não apenas no da “oferta”, que algumas universida­des do nosso país já fazem bastante bem.

Como transforma­r a pesquisa universitá­ria em benefícios diretos para a população?

PROFESSOR EMÉRITO E EX-REITOR DA USP, FOI SECRETÁRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA PRESIDÊNCI­A DA REPÚBLICA E PRESIDENTE DA FAPESP

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