O Estado de S. Paulo

Purgatório da beleza e do caos

Livro do fotógrafo João Pina retrata violência e cotidiano do Rio.

- Simonetta Persichett­i ESPECIAL PARA O ESTADO

46750! Este é o número (segundo o ISP) de assassinat­os no Rio de Janeiro durante o período entre 2007 e 2017. Essa década é também o tempo em que o fotógrafo português João Pina fotografou o caos, a violência urbana no Rio de Janeiro. Por fim, é ainda é o título de seu mais recente livro, agora editado pela Editora Tinta da China e sobre o qual Pina vai apresentar e conversar na quarta-feira, dia 21, a partir das 19h, no Bar do Beco (Rua Aspicuelta, 17 – Vila Madalena). Ele vem a convite da DOC Galeria que passa a representa­r o fotógrafo aqui no Brasil.

Sempre preocupado com questões sociais e humanistas nas suas narrativas visuais, João Pina, foi se deparando com a “aparente naturaliza­ção” da violência no cotidiano carioca. Nas suas imagens, a vida pulsante no meio dos bailes, das prisões, do medo implícito e explícito, dos sentimento­s que afloram olhando suas fotografia­s: “Eu já trabalhava sobre o Brasil, quando em 2007, decidi começar um projeto sobre a violência urbana no Rio de Janeiro. Decidi olhar para uma realidade que existe e é inegável”, nos conta por meio de entrevista feita por e-mail de Washington onde se encontra trabalhand­o neste momento.

O resultado é um livro potente, duro, contundent­e, sem meias-palavras, mas ao mesmo tempo poético. E é isso que nos atrai nas suas imagens. Um ensaio na esteira das boas narrativas documentai­s tão necessária­s para nos dar um panorama do que estamos vivendo e não vendo. Um livro estético que não se dissocia do olhar político (em sentido amplo). Afinal, a estética é formadora de discurso e não existe separação entre criação e crítica: “Eu acredito que todo ser humano é político. Tudo o que fazemos na vida tem implicaçõe­s políticas quer nós queiramos ou não”, relata. É verdade. Como nos ensina a teórica israelense Ariella Azoulay, em seu livro

Civil Imaginatio­n, “criação e imaginação não são o oposto do político. Deveríamos pensar a fotografia como fonte de um saber civil”. E é exatamente isso que podemos perceber nas fotografia­s de Pina: “O que me interessa enquanto autor, é eu interpreta­r a realidade sob a qual trabalho, e depois deixar cada leitor tirar as suas conclusões, e espero que questionar o seu próprio papel nesta história”, reflete.

Infelizmen­te, o número de homicídios 46750 já foi há muito ultrapassa­do, mas não é isso o que importa para o autor. Seu ensaio nunca pretendeu ser uma peça noticiosa, mas um registro para ser visto e percebido ao longo dos anos. Numa era em que estamos sendo submersos por um oceano de imagens diárias nas redes sociais e, aparenteme­nte, sufocados por elas, João Pina consegue “surfar” nesta onda oceânica e entende que “imagens bem feita e contextual­izadas de forma certa, são algo muito potente, e o meu objetivo não é destacar-me do oceano de imagens, mas sim tentar navegar esse oceano para criar imagens e narrativas que possam interessar a muitos outros que navegam este mesmo oceano”. Mesmo assim uma das formas de dar permanênci­a a estas imagens é o fotolivro, algo que possa ser lido e relido com calma, com contemplaç­ão: “A ideia do livro/objeto é algo que a mim me interessa tanto como autor, mas sobretudo como leitor de imagens. O que realmente gosto para além da durabilida­de, é que pode sobretudo ajudar outros a criar consciênci­a e querem saber mais, irem-se informar e ficarem mais atentos”.

O fotojornal­ismo existe e resiste nas fotografia­s de João Pina: “O fotojornal­ismo nunca deixou de existir. Ele continua a existir com muita força. O que acontece é uma renovação dos meios em que o fotojornal­ismo era tradiciona­lmente visto. Conheço fotógrafos que têm um milhão de seguidores no Instagram, e poucos jornais no mundo hoje tem um milhão de leitores, é isso é um paradoxo muito interessan­te.”

Interessan­te mesmo é que o fotojornal­ista continua sendo o narrador de histórias que merecem ser vistas e contadas e que as narrativas visuais podem nos ajudar a compreende­r um pouco melhor o mundo em que vivemos.

Há fotógrafos com 1 milhão de seguidores no Instagram quando poucos jornais no mundo tem um milhão de leitores” João Pina

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JOÃO PINA
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JOAO PINA 40 graus. Imagens de uma cultura tipicament­e carioca, na alegria e na tragédia
 ??  ?? 46750Autor: João Pina. Editora:Tinta da China (148 págs., R$ 200). Lançamento. Bar do Beco. Rua Aspicuelta, 17. 4ª (21/11). 19h
46750Autor: João Pina. Editora:Tinta da China (148 págs., R$ 200). Lançamento. Bar do Beco. Rua Aspicuelta, 17. 4ª (21/11). 19h
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 ??  ?? De todos os guetos. Fotógrafo passou período entre a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos flagrando ambientes de vidas tão extremadas
De todos os guetos. Fotógrafo passou período entre a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos flagrando ambientes de vidas tão extremadas

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