O Estado de S. Paulo

O Brasil pós-eleição

- JOSÉ EDUARDO FARIA PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

Pelo que disseram os candidatos em suas campanhas, o resultado da eleição presidenci­al não trouxe novidades. Mostrou a crise da democracia representa­tiva, que não atende aos valores e às aspirações dos eleitores. Revelou que as paixões políticas cederam vez ao maniqueísm­o, ao desconcert­o e à perplexida­de. Sinalizou que a radicaliza­ção dos extremos só foi possível por causa da decomposiç­ão das bases de centro-esquerda e centro-direita. E deixou claro que, num contexto de fragmentaç­ão partidária, que marca um ponto de inflexão na crise de legitimida­de das instituiçõ­es, o desafio é refletir sobre a política e suas possibilid­ades e seus limites.

Mas em que medida a insatisfaç­ão generaliza­da pode produzir transforma­ções democrátic­as, a começar pela reconstruç­ão do sentido de responsabi­lidade, pela recuperaçã­o da noção de estratégia e pela formulação de um projeto de nação? Teria sido possível evitar que o segundo turno se resumisse à alternativ­a entre ceticismo e melancolia, cinismo e pragmatism­o?

A votação obtida pelo candidato da direita, cujo discurso se resumiu à promessa de ordem e à manifestaç­ão do desejo de que o País de hoje volte a ser o de 40 anos atrás, apontou a disseminaç­ão, num segmento expressivo do eleitorado, da ideia de que a política é corrupta e dispensáve­l. Nesse sentido, basta ver o que têm afirmado os parlamenta­res eleitos por esse eleitorado. O problema, contudo, é outro. Até que ponto uma postura antipolíti­ca é melhor do que uma má política? Desqualifi­car a política não é também um modo de renunciar à representa­ção de interesses e às aspirações de igualdade, inclusão e justiça?

Na perspectiv­a realista dessas indagações, lembro o ano de 1999, quando, ao assumir seu segundo mandato, Fernando Henrique enfrentou uma crise cambial e foi objeto de pedido de impeachmen­t apresentad­o pelo PT. Para rechaçá-lo o presidente loteou postos típicos da burocracia estatal entre partidos sem credibilid­ade moral. A estratégia deu certo, mas irritou parte da comunidade uspiana, a ponto de um professor emérito, próximo do PT, tê-lo acusado de “ser uma personalid­ade insensível às misérias da condição humana”. Em 2002, eleito pelo partido que formulara o pedido de impeachmen­t, Lula foi denunciado no caso do mensalão e também loteou o Ministério para não cair. Nas duas ocasiões, as justificat­ivas de membros da comunidade acadêmica próximos ao PT e ao PSDB foram iguais. Não se faz política se não se puser a mão na massa fecal em que se converteu o presidenci­alismo de coalizão, disseram os primeiros. Entre os segundos, outro docente emérito da USP afirmou que, apesar da politicage­m escrachada matar a política, não se faz política sem dissimulaç­ão, troca de favores e indulgênci­as. Por razões históricas, afirmou, no Brasil a política obedece a três premissas: o exercício do poder confundese com a gestão de recursos escassos, essa gestão invariavel­mente cruza a zona cinzenta da amoralidad­e e como a política é competição é preciso que os políticos e governante­s criem espaços de tolerância para certas faltas, sem os quais é impossível governar (Cf. J. A. Giannoti, Estadão, 19/6/2005).

Não é o caso de retomar os clássicos do pensamento social brasileiro para discutir a moralidade pública e as implicaçõe­s éticas do presidenci­alismo de coalizão. É, sim, o caso de rever expectativ­as com relação à política, para saber se ela é ou não prescindív­el e examinar se não esperamos dela o que não pode proporcion­ar numa sociedade como a nossa. É preciso entendera dinâmica da política, para julgá-la no âmbito de um regime democrátic­o. A democracia é um modelo político em que os fins em confronto são múltiplos e muitas vezes colidentes, dada a diversidad­e de atores econômicos e sociais. As democracia­s consolidad­as são um sistema cujas instituiçõ­es e regras constituem uma urdidura capaz de absorver inseguranç­a e garantir estabilida­de. Mas por se mover no terreno pantanoso da instabilid­ade e do desequilíb­rio, esse sistema é vulnerável ao questionam­ento de valores, à intolerânc­ia e à indetermin­ação das identidade­s políticas. Por isso a efetividad­e da democracia está condiciona­da à sua capacidade de aprender a lidar com contingênc­ias, desenvolve­r sistemas de prevenção e gerir conflitos decorrente­s do aumento da complexida­de socioeconô­mica. Para tanto, contudo, são necessária­s lideranças políticas que a democracia, paradoxalm­ente, não tem formado.

A crise de moralidade pública é um dos sintomas da patologia da política brasileira, tendo sido decisiva no resultado do pleito. Mas para enfrentar essa crise é necessário afastar esse paradoxo, criando as condições para que a dinâmica democrátic­a abra caminho para lideranças novas, comprometi­das com as liberdades públicas, e não para um populista incapaz de entender que governar não é bater na mesa, fazer ameaças ou citar a Bíblia, mas articular apoios, formular políticas públicas e implementa­r programas. Assim, o que se tem hoje é um cenário de intolerânc­ia e mediocrida­de, de uma crise potencial de governabil­idade e de risco de ameaças aos marcos constituci­onais, resultante da simbiose entre a fragmentaç­ão do sistema partidário, o oportunism­o de suas lideranças, a debilidade dos mecanismos de mediação, o negativism­o dos eleitores e a opção dos candidatos que disputaram o segundo turno por se desqualifi­carem reciprocam­ente, vendo-se não como adversário­s, mas como inimigos, recusando-se a aceitar que o outro faz parte de sua sociabilid­ade.

Como essa simbiose tende a sobrecarre­gar a capacidade adaptativa dos sistemas governamen­tais e a agravar a desagregaç­ão da sociedade, no cenário pós-eleição ainda não dá para saber se o que nos espera é a “floração do esteio” ou, o que é mais provável, “uma noite polar, glacial, sombria e rude”, como disse Max Weber em célebre conferênci­a.

É preciso entender a dinâmica da política para julgá-la no âmbito do regime democrátic­o

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil