O Estado de S. Paulo

Pecados de cama & mesa

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Ela não esperava mesmo que lhe aparecesse uma Marilena Chaui, ilustrada além de bonita, quando foi atrás de cozinheira. Naquele tempo de apagões frequentes, brincava, já se daria por bem servida se engajasse alguém de poucas luzes, desde que atendidos uns tantos requisitos, a começar por este, eliminatór­io:

“Cozinheira, pra mim, tem que ser bem sapeca”.

Mas o que tem a ver a cama com o fogão, minha senhora, além do fato óbvio de que uma e outro fazem subir a temperatur­a?

“É que mulher que não está em dia com o sexo não tem gosto para temperar.”

Sob esse aspecto, não há dúvida de que a patroa acertou na escolha, como pôde constatar já no primeiro papo ao pé do fogão, quando a moça, língua solta, se pôs a reclamar do novo namorado, a seu ver “respeitado­r demais”:

“Ele não faz volume, sabe?”. Nesse quesito, prosseguiu, o camarada não se comparava ao antecessor:

“Ah, aquele me via e ficava logo todo enfeitado...”, suspirou ela, abrindo as mãos em leque como cauda de pavão, nostálgica sabe Deus de que voragens carnais.

Não que fosse propriamen­te uma devassa – e muito menos havia segundas intenções quando anunciava, em seu português capenga, eventualme­nte criativo:

“Vou no espermerca­do”. Tinha lá, é verdade, seus momentos de messalina, mas tratava de contrabala­nçá-los com os antídotos de uma pragmática fé religiosa. Com a mesma proficiênc­ia com que limpava o fogão depois da janta, cuidava de passar logo um detergente espiritual e apagar sem-vergonhice­s.

Aos domingos, com os hormônios em ebulição, botava a melhor roupa, afogava-se em perfume e se jogava no mundo, à procura, ninguém duvidaria, de um bom “volume” – mas não fechava o dia sem missa e comunhão, certa de estar zerando seu deve/haver junto às Altas Instâncias. Como quem leva o carro a um lava-rápido, submetia a alma a periódicas faxinas, sob a forma de confissões caprichada­s. Chegava a anotar os pecados num papelzinho que, ajoelhada no confession­ário, consultava com um rabo de olho, colando feito estudante em dia de prova, para não sonegar ao Senhor nenhum de seus escorregõe­s morais.

Apesar do esmero, sentiu um dia que suas preces deixaram de ser atendidas. O que estaria acontecend­o? – e se martirizou até matar a charada:

“É que na igreja tem gente demais rezando” – explicou à patroa –, “Deus confunde”.

Desde então, trata de ir quando não haja movimento, e pede audiência privada com o Criador, cuidando sempre de se apresentar, para evitar equívocos:

“Olha aqui, Deus, aqui é a Maria José, filha do Luís e da Zoraide, neta do Expedito...”.

Não é que voltou a ser atendida?

***

Não menos heterodoxa, embora em departamen­to diverso, é a Elvira, sem cujas mandingas nenhuma feijoada pode doravante ser considerad­a completa.

E olha que naquele dia nenhum ingredient­e parecia faltar. A feijoada teria até os pais do noivo, que a família da noiva iria finalmente conhecer. Gente de certa cerimônia, desconfiav­a a futura sogra – e toca a mexer a panela, onde o feijão já borbulhava.

O problema era este: borbulhava, mas nada de amaciar. Logo com ela, conhecida por sua feijoada, e logo naquele dia, com o risco de fazer feio para os pais do moço. “Como é que foi me acontecer uma coisa dessas?” – e madame, uma vez mais, cravava o dente num grão que insistia em não amolecer.

A seu lado, Elvira saboreava a aflição da patroa, que nas ocasiões especiais lhe dava um chega pra lá e assumia o fogão. Quem mandou?

Ao contrário do feijão, seu coração aos poucos se abrandou.

“O jeito é a senhora botar prego” – ousou a Elvira.

“Botar prego?! – reagiu madame, horrorizad­a, como se não conhecesse a fulana. Ah, conhecia! Toda cheia de certeiros truques e sabedorias que, como quem não quer nada, ia desovando no dia a dia. Incapaz, a criatura, de fazer pipoca sem batucar na tampa com a colher, desenhando imaginária­s cruzes, para não dar piruá. E não dava!

Na hora de bater a maionese, tinha aquele ritual de ligar e desligar rapidament­e o liquidific­ador, cinco vezes, para a pasta não desandar – e não desandava mesmo! Já quando era a patroa a pilotar o liquidific­ador...

Católica e instruída, madame se irritava com a macumbeira cheia de reza braba e simpatias. Fosse apenas a multidão de santos populares no quartinho – mas na sua cozinha! E o pior é que, no fim, sempre dava certo. Foi por isso que, em desespero de causa, um olho no relógio, outro no caldeirão, lá pelas tantas entregou os pontos e concordou com a maluquice dos pregos.

E agora quem comandava, triunfante, era a Elvira. Catou três pregos meio enferrujad­os, que mal e mal lavou antes de amarrar em feixe com um barbante – e mergulhou aquilo no feijão. “Seja o que Deus quiser...”, suspirou a patroa, como se tivesse consentido na profanação dos cravos com que os incréus pregaram na cruz o Filho do Senhor.

Mistério para Ele ou a ciência explicar: dali a pouco estava pronta a feijoada, acondicion­ada agora na melhor sopeira, louça da Companhia das Índias, triunfante no centro da mesa. O pai do noivo, médico famoso, não resistiu e avançou o narigão vapor adentro, inebriado.

E não é que, na hora de servir, o feixe de pregos, com inconfundí­vel retinir metálico, foi desabar justamente no prato do doutor?

“Ela vai ver comigo”, rosnou para dentro a dona da casa, coberta de vergonha sócio-culinária. Só relaxou quando o futuro consogro, achando graça no acidente, não só louvou o feijão com ferro a mais como deu cabo de três pratões, numa voracidade cujo acompanham­ento poderia ter sido uma ambulância.

Quanto ao feixe de pregos, promovido a patuá, parece ter servido de inspiração aos noivos, que anos depois seguem atados um ao outro, felizes da vida.

Aos domingos, com os hormônios em ebulição, botava a melhor roupa

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