O Estado de S. Paulo

E coisa e tal

- MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

“Direita é do mito Esquerda é propina. Direita é águia Esquerda é rapina.”

Mal parafrasea­ndo Arnaldo Jabor, estamos assim. Direita é isso, esquerda é aquilo. Mas ao contrário do amor e do sexo, protagonis­tas da crônica original, não há complement­os entre os dois vértices da política, ao menos não no Brasil das distopias que emerge das cinzas das eleições de 2018.

Nas últimas semanas, soubemos que o nazismo é de esquerda, o globalismo é vertente nefasta do marxismo cultural, ideologia é o que há de pior ainda que se confunda com ideias, e que a bela música Imagine de John Lennon é hino em prol da hipergloba­lização, e do sonho comunista. Para os que dizem coisas como essas, privatizar é de direita, intervir no funcioname­nto dos mercados é de esquerda, priorizar o comércio internacio­nal é de direita, combater a desigualda­de de renda é de esquerda. Há apenas dois mundinhos: o da direita divina ou o da esquerda pagã. E, a política econômica, necessaria­mente, deve se enquadrar em algum desses mundinhos porque caso não o faça, não merece qualquer atenção – nem do bem, nem do mal.

Ocorre que, no Brasil, um governo social-democrata privatizou. Vários governos militares, que de esquerda nada tinham, interviera­m no funcioname­nto dos mercados até não mais poder, causando os desarranjo­s que hoje muitos preferem esquecer. O comércio internacio­nal sempre foi pauta tóxica que nem a direita, nem a esquerda quiseram abraçar. Afinal, o protecioni­smo sempre reinou absoluto no País tropical, abençoado por Deus, esse País em que dizer que Ele está acima de todos virou mote de campanha e de governo. O globalismo – Deus nos livre – torna o homem escravo e Deus irrelevant­e, avisam. Só não nos dizem exatamente como.

Tampouco nos iluminam sobre como o Brasil sairá do seu eterno isolamento global sem passar por algum processo que possa não ser identifica­do como globalizaç­ão. A imigração é o mal do século, querem que acreditemo­s. Contudo, há estudo após estudo mostrando que políticas que facilitam a imigração são capazes de aumentar a produtivid­ade e de impulsiona­r o cresciment­o. O espantalho da imigração que hoje vive no imaginário de Donald Trump e de seus seguidores simplesmen­te não existe, menos ainda no Brasil, onde quase não recebemos – mais – imigrantes. Os recebemos aos montes no passado, somos um País de imigrantes. Mas, é fácil esquecer disso na balbúrdia da atualidade.

Quanto às desigualda­des e a justiça social, dia desses tive a prova mais certa e amarga de que esses são temas que parte da sociedade brasileira passou a associar ao que acreditam ser a esquerda, os comunistas, os vermelhos. Como sabem alguns leitores, dirijo o programa de estudos latino americanos da Escola de Estudos Internacio­nais Avançados da Universida­de de Johns Hopkins, a SAIS. Criamos recentemen­te uma bolsa para alunos sub-representa­dos e/ou interessad­os em estudar temas relativos à justiça social, à equidade, à representa­tividade política, à violência e exclusão social na América Latina. A bolsa tem por objetivo prover ajuda financeira para que esses alunos talentosos, porém sem capacidade financeira para custear um mestrado de dois anos numa universida­de privada

O espantalho da imigração que hoje vive no imaginário de Trump e de seus seguidores simplesmen­te não existe

de prestígio internacio­nal, possam fazê-lo. A bolsa leva o nome da vereadora Marielle Franco, brutalment­e assassinad­a junto com seu motorista em março desse ano no Rio de Janeiro.

Marielle Franco elegeu-se pelo PSOL. Contudo, as causas que abraçava não eram nem de direita, nem de esquerda. As causas que abraçava eram, antes de tudo, humanitári­as. Causas humanitári­as pertencem a todos nós, sejamos de direita, ou de esquerda, ou de nada. No entanto, houve reações muito estranhas no Brasil quando do anúncio da bolsa. Muitos viram na iniciativa o seu propósito real. Outros, nem tanto. Outros, mordidos pela mosca da confusão mental generaliza­da que engoliu a Nação, viram doutrinaçã­o, vermelhidã­o, e esse tal espantalho do marxismo cultural que virou espécie de mantra do transe coletivo.

Bobagens vêm dos outros e vão embora – espera-se. Reflexão vem de nós e demora. Mas, por ora:

“Direita é isso

Esquerda é aquilo

E coisa e tal

E tal e coisa.”

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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