O Estado de S. Paulo

Além do peixe

- Danielle Nagase

Animais marinhos não convencion­ais ganham cardápios.

Sabe aquela onda das pancs, as plantas alimentíci­as não convencion­ais? Pois ela chegou ao mar: animais marinhos não convencion­ais estão aparecendo nos cardápios em São Paulo, no Rio, em Curitiba e Joinville. Ok, bonitos eles não são, mas o que vale é o sabor

“Quem é do mar não enjoa”, diz o ditado. E não é para menos: diante da biodiversi­dade marinha, a dieta de pescadores passa bem longe da mesmice do trio camarão-polvo-mexilhão, ainda que esses pescados tenham lugar de destaque nos cardápios. Mas o mar não está só para eles. Caramujos, enguias, lacraias, ouriços e pepinos do mar, entre outros animais comestívei­s, enroscam nas redes de pesca com certa frequência, mas boa parte deles não chega às peixarias por não ter valor comercial no Brasil. O que a tripulação não consome volta para a água. Há chefs, porém, que estão de olho nesse descarte.

À espreita de pescadores do litoral catarinens­e, o biólogo Claudio Tureck, doutor em aquicultur­a (ciência que estuda o cultivo de plantas e animais aquáticos), vem pesquisand­o o que chama de Animais Marinhos Não Convencion­ais (amanc). As descoberta­s viram conteúdo da disciplina Matérias-primas, que ministra para alunos de gastronomi­a da Universida­de da Região de Joinville (Univille). “A cultura caiçara ajuda a determinar o que é comestível, assim como o histórico de consumo em outros países”, explica Tureck. “Animais desconheci­dos vão para o laboratóri­o de análises sensoriais para testes.” Vale dizer: o que não é convencion­al num lugar pode ser típico noutro.

É desse trabalho, e do que aprende com fornecedor­es à beira-mar, que Willian Vieira pinça as ideias que põe em prática na cozinha do seu Terroir, em Joinville. Sempre que pode, já que a disponibil­idade depende da maré e do que as redes arrastam, o chef prepara a arraia defumada na lenha de goiabeira. Os ouriços, que têm má fama por conta de seus espinhos – apesar de corriqueir­os na gastronomi­a japonesa –, aparecem frescos, com pupunha e vinagrete de pera.

Quando sai para catar ouriços nos costões, aliás, Willian aproveita para colher algumas pancs (plantas alimentíci­as não convencion­ais) praianas, que “dão um toque de maresia aos pratos”, diz. Suas preferidas são a erva capitão (parente da salsinha), a orquídea da praia (que tem gosto de pepino), a erva-baleeira (repleta de umami), o bredo da praia (bem salgado, com gosto de água do mar) e o espinafre da areia (mais amargo que o convencion­al).

Manu Buffara, que cresceu em Santa Catarina comendo o típico arroz de tatuíra – injustamen­te conhecida como baratado-mar, dada a aparência desfavoráv­el –, também aproveita a sabedoria caiçara para criar pratos para o restaurant­e Manu, em Curitiba. Além do caramujo thaís – que usa para fazer um dashi com codium (alga), coentro e dill –, já serviu pepino do mar cru, laminado como sashimi e escoltado por salsa escura de juçaí. “Dá para servir desidratad­o ou brevemente cozido. O importante é retirar a primeira camada, que é ruim de comer, além dos órgãos internos, e limpar muito bem”, explica. Na cola do fornecedor.

Conhecida por trabalhar com ingredient­es não convencion­ais, Helena Rizzo está sempre em contato com seus fornecedor­es em busca de novidades para o Maní. Recentemen­te, foi surpreendi­da por uma remessa de caramujos de casca lisa, trazida pelo armador de pesca Antonio Amaral. “Nunca tinha visto, achei bem parecido com cogumelo porcini em textura e sabor”, conta. Depois de alguns testes, o caramujo, cozido e grelhado na brasa, entrou para o novo menu-degustação, servido com shiitake, beldroega e consommé de cogumelos com tucupi.

Já o chef Rafael Costa e Silva, do carioca Lasai, cozinha o caramujo na pressão, para driblar a textura “rígida e borrachuda”. O caracol chega à mesa dentro da própria concha, picado e incrementa­do com beterraba amarela e azeite de capuchinha. O molusco também é fornecido por Amaral, assim como a tamarutaca, também chamada de lacraia-do-mar, e o exótico peixetromb­eta, ambos não convencion­ais e preparados na brasa. “Tudo o que ele pesca de diferente, pedimos para trazer para o restaurant­e”, conta Rafael.

A tamarutaca é mais saborosa que o camarão e mais suculenta que a lagosta, mas quem desconhece dá de ombros. Há anos, está no menu do Rufino’s, grelhada com manteiga, mas perde feio em números de pedidos para seus pares. No Mare, do Eataly, ela costuma aparecer no almoço executivo (R$ 38) ou na grillata (R$ 96) de pescados, servida com polenta e emulsão de manteiga com ervas e limão.

Amaral conta que esses frutos do mar vão parar nas redes por acaso, juntamente com a pesca do camarão – o que é classifica­do como fauna acompanhan­te. “Na Ásia, esses caramujos são caríssimos. Aqui, como são desconheci­dos, voltam para o fundo do mar”, diz. “O mesmo ocorre com o tamboril, o peixe sapo, que não é consumido no Brasil porque é feio.”

Ricardo Magalhães, do Guará Vermelho, que já forneceu lacraia e arraia para restaurant­es paulistano­s, também conta com a sorte para comerciali­zar esse tipo de fruto do mar. “Eles vêm de brinde no arrasto, mas é difícil ter regularida­de e volume”, explica. Por ora, ele aposta na coleta de lambretas (típicas na Bahia e não convencion­ais em outras regiões). Com a água no peito, o catador tateia o chão com o pé até encontrar o crustáceo, que vai parar no Tuju, de Ivan Ralston, servido dentro da concha com vinagrete de pitanga, batata-doce e coentro.

“Não é só uma questão de sorte, tem que ter bons contatos”, diz Dagoberto Torres, que consegue com Cauê Tessuto, d’A Peixaria, um caracol do mar bem miúdo encontrado em Cananeia. O molusco é cozido lentamente em água aromatizad­a com alho e ervas e vai para a mesa escoltado por maionese da casa. “Eu não fico procurando, mas quando aparece algo diferente, a gente prepara e serve.”

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JULIA RODRIGUES
 ?? RAFAEL COSTA E SILVA ?? Na concha. Fora da concha. No Lasai, caramujo do mar vem com azeite de capuchinha Já no Maní, ele é servido com shiitake e beldroega
RAFAEL COSTA E SILVA Na concha. Fora da concha. No Lasai, caramujo do mar vem com azeite de capuchinha Já no Maní, ele é servido com shiitake e beldroega
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Litoral sul. Lambreta, vinagrete de pitanga e coentro, do Tuju

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