O Estado de S. Paulo

‘Em 54 anos de campo, só faltei uma vez, por conjuntivi­te’

Após fazer sua última transmissã­o de jogo na TV, o pioneiro nas análises dos juízes se prepara para ver o futebol só por lazer

-

Árbitro de futebol durante 25 anos e comentaris­ta de arbitragem por mais 29, Arnaldo Cezar Coelho está saindo de cena. Anteontem, o amistoso em que o Brasil venceu Camarões por 1 a 0 marcou a sua despedida das transmissõ­es. Ainda restam compromiss­os em programas da Globo e do SporTV até 17 de dezembro. Depois, futebol, para ele, será apenas lazer, sem o compromiss­o de ver com lupa cada lance das partidas. “Chegou o momento de parar, me desligar um pouco”, diz o personagem que ajudou a populariza­r as análises dos homens do apito com o bordão “a regra é clara”.

Como foi acordar em seu primeiro dia como aposentado? Ainda não foi o primeiro, porque tenho alguns programas pra fazer em dezembro. Ontem (terça) foi a última transmissã­o. E outra: nunca vou me considerar um cara aposentado, porque tenho uma filiada da Globo (Arnaldo é proprietár­io da TV Rio Sul, que tem sede em Resende e filial em Angra dos Reis).

O que essencialm­ente mudará na sua rotina? Vai ver menos futebol a partir de agora?

É uma das coisas. Não vou ter obrigação de ver, vou assistir quando tiver tempo disponível e sem o olhar que tenho agora. Uma coisa é assistir esclarecen­do lances, mesmo sem estar trabalhand­o no jogo. Porque nesses últimos quatro anos minha atividade foi também coordenar os comentaris­tas de arbitragem da Rede Globo. E, aí, o que acontecia? A gente tem um grupo de WhatsApp (formado por exárbitros que são comentaris­tas da emissora) e toda vez que aparece um lance mais complicado a gente discute.

Você sai de cena em um momento de grandes críticas à arbitragem brasileira, discussão sobre implementa­ção de VAR... Acha que não tinha mais como contribuir em sua função? Tem como contribuir, porque a minha função é muito mais didática. O motivo da saída é porque chegou o momento de parar, me desligar um pouco, me dedicar aos negócios, à família. Foram 29 anos na TV e nunca cheguei atrasado a um jogo. Na verdade, em 54 anos de campo, contando o período também apitando, só faltei uma vez, por causa de uma conjuntivi­te. E mesmo assim fiquei à beira do campo, revoltado, porque dava para ter apitado. É como um soldado sem farda, o cara que tem disciplina. Isso cansa. Não é um negócio perto de casa, é viagem o tempo todo, aeroporto. Faço ponte aérea desde 1964.

E uma outra função ainda dentro da arbitragem, como coordenado­r de arbitragem na CBF, algo do tipo. Você gostaria?

Não. Sabe por que eu nunca toparia? Porque esses caras hoje em dia são profission­ais, trabalham de segunda à segunda. O (Wilson Luiz) Seneme (ex-árbitro, hoje presidente do Comitê de Arbitragem da Conmebol) foi convidado pela Conmebol e está morando em Assunção, no Paraguai, levou os filhos para estudar lá. O presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, o coronel Marcos Marinho, mora no Rio, precisa se dedicar o tempo todo. Se for para fazer isso, ficava onde eu estava. E mais: nessa função, eu teria de torcer pelos juízes. Rapaz, torcer por eles é muito difícil! Nem as famílias, às vezes, torcem!

Você diria que mudou as transmissõ­es esportivas?

Não, o que aconteceu foi o seguinte: tinha no rádio comentaris­ta famoso de arbitragem, mas não tinha na televisão. O que eu vi de oportunida­de? Que a imagem fala mais alto do que qualquer coisa no futebol. A imagem não mente. E comecei a explorá-la para explicar didaticame­nte os lances. Agora, está surgindo uma nova figura, a do “teleárbitr­o”. É um cara que fica em casa, nunca apitou, não está vendo a dificuldad­e do jogo e diz que foi pênalti. É igual ao árbitro de vídeo. Fica numa sala com ar-condiciona­do e cafezinho e quer interpreta­r. Não pode interpreta­r. Interpreta­ção cabe ao árbitro, que está ali sentindo o jogo.

Como foi trabalhar por quase três décadas na Globo, e ao lado do Galvão Bueno?

No dia a dia, convivi com grandes estrelas quando apitava, e sempre procurei ter noção de que não era o dono do palco. E, no caso do Galvão, nunca quis ser mais do que ele, porque ele é realmente a voz do esporte brasileiro nas últimas décadas. A empatia que a gente tem é fruto dessa nossa cumplicida­de. Muitas vezes, eu sento com o Galvão e falo: “Talvez você esteja exagerando, respira fundo”. Isso é função do amigo.

Mas como eram os momentos de rusgas?

Os momentos difíceis foram quando surgiu “a regra é clara”. Às vezes, ela pode ser injusta, mas é clara, está escrito. E ele discutia comigo. Não sei se ele provocava a discussão porque ela gera comentário­s ou se porque era convicção dele. Quando é jogo do Brasil... Rapaz, não tem maior torcedor do Brasil que o Galvão.

Acha que antigament­e os árbitros tinham mais personalid­ade? Tinham mais autoridade. O árbitro tinha o poder da decisão. Havia dois bandeirinh­as que auxiliavam na marcação de impediment­o e lateral. Mas ‘ai’ de um bandeirinh­a que marcasse falta! Porra, você tá apitando, viu que não foi falta, ai vai o bandeirinh­a e levanta?

Qual regra é a mais clara na sua vida?

Sem disciplina, não se chega a lugar nenhum. Se (o compromiss­o) está marcado para 9h e chega às 11h... Se falta no outro dia porque o cachorrinh­o ficou doente... “Ah, mas é um baita de um profission­al”. Não adianta, você não vai a lugar algum. / R. C.

Arnaldo Cezar Coelho

SOBRE O DIA DO AUGE NA CARREIRA ‘Na quinta-feira, me ligou o secretário da Fifa dizendo que eu iria apitar a final da Copa no domingo’

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil