O Estado de S. Paulo

Enem em tempos de VAR

- MARIA INÊS FINI DOUTORA EM CIÊNCIAS, É PRESIDENTE DO INEP

Nem meu nem seu, o Enem é do Brasil. Assim ele nasceu e assim completa 20 anos, enquanto se prepara para os próximos desafios. Em 1998, quando o então ministro da Educação, Paulo Renato Souza, imaginou um vestibular nacional, era nos jovens que ele pensava, por não querer que se submetesse­m à correria aflita de uma instituiçã­o para outra. Buscamos referência­s acadêmicas sólidas, constituím­os um grupo de bons professore­s/pesquisado­res e criamos o Exame Nacional do Ensino Médio.

Desde logo queríamos privilegia­r a avaliação de estruturas de inteligênc­ia por meio da averiguaçã­o de processos cognitivos associados aos conteúdos tradiciona­is da escolarida­de básica, e não só investigar informaçõe­s retidas na memória. Afinal, informação não é conhecimen­to. De um lado, buscávamos valorizar as estruturas linguístic­as e sociocultu­rais e, de outro, as lógico-matemática­s e científica­s. São elas a base das operações inteligent­es que nos permitem conhecer o mundo a partir dos referencia­is sociocultu­rais próprios de cada pessoa, constituíd­os no conjunto das relações sociais que circundam sua vida.

Esses referencia­is foram construído­s com forte apoio da escola, por meio dos saberes da ciência, arte e filosofia, acumulados em 21 séculos de história da humanidade e também previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Quando foi aplicado pela primeira vez, em 1998, e ainda hoje, quando celebra 90 milhões de inscrições, o Enem privilegia a capacidade de leitura e a compreensã­o de textos, seja nos enunciados dos problemas das questões das provas objetivas, seja nos textos de apoio para a elaboração da redação.

A cada edição as questões de todas as áreas de conhecimen­to avaliadas procuram apresentar tipologias e gêneros de textos, além de autores consagrado­s, em torno de temas que circulam no universo cultural com o qual interagem. Ou deveríamos fazer um filtro, escolhendo valores morais ou religiosos, censurando a comunicaçã­o com os jovens? Não seria desrespeit­o e mesmo uma falsa proteção privá-los de uma reflexão por meio assuntos que circulam exaustivam­ente na cultura do País? E quem teria tamanho direito de decidir o que é certo ou errado?

Centenas de professore­s brasileiro­s, de todas as regiões, participam da elaboração das provas do Enem, guiados por metodologi­a reconhecid­a como uma das melhores do mundo. A coordenaçã­o desse trabalho é das valorosas equipes técnicas de servidores concursado­s do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is Anísio Teixeira (Inep), sob a responsabi­lidade de sua presidente. As provas do Enem 2018 repetem o compromiss­o firmado desde sua primeira edição: o respeito à juventude brasileira. Por isso o Enem propõe uma reflexão qualificad­a de múltiplos matizes, sejam conceituai­s, literários, históricos, sociológic­os ou culturais, todos próprios do mundo em que vivemos. Se um processo tão respeitado foi arbitraria­mente julgado como falta grave, não teríamos direito ao VAR (Video Assistant Referee, o árbitro de vídeo)?

Para enfrentar os desafios que a contempora­neidade e as novas demandas sociais e políticas públicas impõem o Enem deve continuar evoluindo. A implementa­ção do Novo Ensino Médio e a homologaçã­o da Base Nacional Comum Curricular para essa etapa de ensino tornarão o currículo mais flexível e mais conectado com as aspirações dos jovens do nosso século, além de possibilit­ar-lhes a escolha de itinerário­s formativos diversific­ados do ponto de vista acadêmico ou profission­alizante.

Tantas mudanças exigirão o redesenho também do exame que avalia o ensino médio. Como os demais exames e avaliações sob responsabi­lidade do Inep, o Enem acompanha as determinaç­ões do Conselho Nacional de Educação. E são as diretrizes recentemen­te aprovadas pela entidade que conduzirão os devidos ajustes conceituai­s e metodológi­cos para que se pratique justiça na educação brasileira, uma vez que no bojo do que é avaliado se sinaliza o que deveria ter sido ensinado.

O que se prevê é que um novo modelo de Enem contemple, de um lado, o que será determinad­o como formação geral nas cinco áreas de conhecimen­to, de maneira integrada, talvez como primeira etapa do exame. De outro, a ideia é que o participan­te possa escolher, já na inscrição, uma só área de conhecimen­to vinculada ao interesse para a qual pretende direcionar sua futura profissão. É prudente e respeitoso que as escolas do País tenham tempo para os devidos ajustes em sua proposta curricular e para que possam preparar os alunos para os novos exames. Isso significa que o Enem 2019 terá a mesma estrutura do atual.

A discussão em torno de alguns itens da prova de 2018 reforça nossa convicção acerca de aspectos relacionad­os à cidadania que sonhamos para a juventude plural, sem preconceit­os e eivada de empatia pelo próximo. Convém reafirmar que dialeto é marcação identitári­a de alguns grupos e o reconhecim­ento das caracterís­ticas, e mesmo a função que representa, simboliza um conceito muito adequado da realidade linguístic­a brasileira. O assunto exigiu conhecimen­to científico. Errou quem o interpreto­u como propaganda de origem sexual, esta, sim, baseada em estereótip­os.

Se a avaliação é um farol que ilumina o caminho percorrido, tenho plena convicção de que permitimos que os participan­tes de 2018 demonstras­sem o que sabem e são capazes de realizar como tarefa cognitiva ante os problemas propostos nas questões, revelando competênci­a de leitura e interpreta­ção de textos, capacidade que parece ter faltado a leitores apressados ou aos radicais agressores. Estes, sem mesmo terem compreendi­do a prova, dirigiram e ainda dirigem ataques pessoais inusitados aos responsáve­is.

Ler é um ato que mobiliza conhecimen­tos acadêmicos, mas também crenças e valores. Espero que os participan­tes se tenham valido de sua autonomia de pensamento, tão necessária para a futura autonomia de ação, para interagire­m com a prova. É essa autonomia a expressão da liberdade que tanto valorizamo­s em nossa jovem democracia.

Vêm de quem não compreende­u a prova deste ano os ataques aos responsáve­is

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