O Estado de S. Paulo

Melhor não complicar

- LUÍS EDUARDO ASSIS

Estamos à deriva. O governo Temer não existe há tempos e o presidente eleito administra apenas as expectativ­as. Estamos no ar, antes de mergulhar, como dizia Caetano. Não chega a ser ruim. A inflação finge desmaio. Fecharemos este ano com pouco mais de 4% de variação no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), abaixo da meta. O cresciment­o será parco, mas a recessão ficou para trás. Teremos o segundo maior superávit comercial da história. A geração de vagas no mercado formal deve alcançar 400 mil, a mais alta desde 2013. Antes que alguém argumente que o barco navega melhor quando não há ninguém no leme, é preciso lembrar que, sob essa aparente calmaria, a bombarelóg­io dos gastos previdenci­ários continua ligada. O gasto federal com previdênci­a deve alcançar R$ 700 bilhões este ano. É mais do que o triplo dos orçamentos somados de Saúde e Educação. São quase R$ 2 bilhões por dia, R$ 80 milhões por hora. Cerca de metade dos gastos federais é alocada para a Previdênci­a. No ritmo que vamos, em dez anos a Previdênci­a exigirá 80% do Orçamento federal. Estamos a caminho do colapso.

É urgente que o novo governo defina uma reforma da Previdênci­a para chamar de sua. O programa apresentad­o pelo PSL sugere um sistema misto, combinando o regime atual de repartição (pelo qual os trabalhado­res na ativa pagam com suas contribuiç­ões as aposentado­rias dos inativos) com um sistema de capitaliza­ção com contas individuai­s, situação em que cada trabalhado­r poupa para seu próprio benefício no futuro. A ideia é vaga – e não é boa.

A passagem de um regime de contribuiç­ão para capitaliza­ção implica um custo fiscal, já que a partir de algum momento as contribuiç­ões, ou parte delas, deixam de ser canalizada­s para o pagamento de aposentado­ria para constituir os fundos individuai­s. Este custo pode ser gigantesco. Uma forma de diminuilo é reduzir o teto de pagamento do INSS. O teto é alto no Brasil, cerca de 190% do PIB per capita, ante 15% na Austrália, 20% no Canadá e 44% na França. Quanto menor for o valor máximo de benefício, menor será o déficit no longo prazo, mas também maior será o custo fiscal da transição.

Estudo primoroso dos economista­s Fabio Giambiagi e Otávio Sidone (A Reforma Previdenci­ária e o Teto do Regime Geral de Previdênci­a Social, BNDES, janeiro 2018) mostra que uma eventual redução do teto para 3 salários mínimos reduziria a contribuiç­ão dos segurados em R$ 198,8 bilhões no acumulado entre 2019 e 2026, contra uma queda na despesa de R$ 84 bilhões, do que resulta um acréscimo líquido nos dispêndios de R$ 114,8 bilhões. Esse custo é decrescent­e ao longo do tempo, mas oneraria o Tesouro nos primeiros anos, justamente quando é imperativo um ajuste fiscal. Está além do nosso alcance. Nossa saúde fiscal não permite essa extravagân­cia.

Outra complicaçã­o de um regime de capitaliza­ção seria a regulação do mercado que administra­rá estes recursos. No Chile, pioneiro deste regime, parte significat­iva dos rendimento­s dos trabalhado­res foi abocanhada pelas altas taxas

O programa apresentad­o pelo PSL para a Previdênci­a sugere um sistema misto. A ideia é vaga – e não é boa

cobradas pelos administra­dores. A baixa rentabilid­ade dos PGBLs, também resultante de altas taxas de administra­ção, é um prenúncio de que o mesmo pode ocorrer aqui.

Por último, é mais que convenient­e não subestimar a dificuldad­e em comunicar mudanças complexas. A discussão da Previdênci­a no governo Temer teve, pelo menos, o condão de aumentar o conhecimen­to do problema. Analistas que defendem que a Previdênci­a é superavitá­ria hoje são tão raros quanto as pessoas que acham que a Terra é plana (talvez sejam os mesmos). Para quem tem mostrado habilidade em criar problemas novos e tropeçar no cadarço desamarrad­o do próprio sapato é melhor não complicar. Simples já é difícil. ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E PROFESSOR DA PUC-SP E DA FGV-SP E-MAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

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