O Estado de S. Paulo

‘São 70 mil eleitos, será que nenhum presta?’

Diretora da Raps critica a noção de que todos os políticos de carreira sejam ruins

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Com seis anos de existência, a Rede de Ação Política pela Sustentabi­lidade (Raps) – fundada por Guilherme Leal, da Natura – já conta com 36 de seus membros eleitos este ano, além dos que conquistar­am mandatos em 2014 e 2016. Só no novo Congresso, eles são 19 parlamenta­res: 16 deputados e três senadores. Na próxima etapa, a organizaçã­o, de acordo com sua diretora-executiva, Mônica Sodré, vai colocar os seus quadros eleitos em contato uns com os outros para discutir pautas que estão na agenda do próximo governo – como reforma da Previdênci­a, revisão de pacto federativo, Estatuto do Desarmamen­to.

A ideia é construir convergênc­ia entre gente de partidos antagônico­s. “A Raps costuma ser esse espaço onde as pessoas se sentem um pouco mais à vontade pra conversar, a despeito das diferenças”. Nesse sentido, ela diz que prefere evitar a palavra “renovação” para definir o movimento: “Prefiro usar “qualificaç­ão”, explica Mônica à repórter Paula Reverbel. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Poucos previram essa taxa de renovação do Congresso. Muitos caciques não conseguira­m se eleger, nem com dinheiro do fundo eleitoral. Como avalia isso?

A criação das regras para distribuir o fundo eleitoral já foi, na visão de muitos analistas, uma maneira de o próprio sistema se blindar contra a entrada de agentes externos. Ainda assim, vimos alguma mudança na composição do Congresso, sobretudo da Câmara. Me parece resultado de fenômeno que muita gente não previu, que foram as redes sociais e o WhatsApp. Muitos candidatos fizeram bom uso dessas ferramenta­s, que em geral são menos custosas do que os meios de comunicaçã­o tradiciona­is. Temos alguns nomes que tradiciona­lmente estavam lá e não conseguira­m se reeleger – isso pode denotar, sim, um desejo das pessoas pelo novo, pelo diferente.

O que lhe chamou atenção? Teremos mais novatos na Câmara, mas há uma qualificaç­ão desse número de novatos. Muitas vezes as pessoas são novas na Casa, mas já tiveram algum tipo de exercício de atividade política, já foram prefeitos, vereadores... ou em uma função nomeada, como secretário... Vale a pena atentar a esses detalhes quando falamos dessa renovação. Organizamo­s um seminário em parceria com a Fundação Fernando Henrique Cardoso em outubro e fizemos essa filtragem dos dados. Nessa alardeada renovação há alguns mais de fora do que outros. Não vejo demérito algum nisso.

Mas qual que é a visão da Raps sobre a renovação?

Há uma certa junção de propostas que acabaram rotuladas como “movimento de renovação”. Procuramos deixar claro que a Raps não é um movimento de renovação. Ela tem conselho de ética, conselho fiscal, conselho consultivo, conselho diretor. Tem doadores, todos declarados e divulgados anualmente nos relatórios, desde 2013. E nosso fim não é a renovação no sentido mais comum do termo – a gente valoriza, sim, quem está na política. A nossa ideia é ser um polo de disseminaç­ão e difusão da sustentabi­lidade para além da área ambiental, independen­te de os nossos quadros estarem no primeiro mandato ou não. Queremos boas pessoas na política, pessoas trabalhand­o pela sustentabi­lidade. Queremos fazer um mix entre aqueles que já estão lá – e têm mais experiênci­a – e os que estão chegando.

Mas vocês ajudam os estreantes na política.

Sim, a gente tem um compromiss­o com a formação de novos líderes, dar voz, vez e oportunida­de a uma nova geração que entende cada vez mais que a política é fundamenta­l. E temos nos dedicado a isso. É difícil pra um novato começar do zero. As pessoas que já estão na política – que já têm mais bagagem, já passaram por eleições – têm o papel de receber os que chegam e partilhar experiênci­a. Nossa ideia é qualificar a política. A ideia de renovação traz uma noção de que tudo que está aí não é bom, e não é isso. Temos boas pessoas exercendo seus mandatos. Costumo evitar a palavra “renovação”, prefiro usar “qualificaç­ão”.

É generaliza­da a impressão de que o Congresso tem um monte de gente desqualifi­cada.

É importante ressaltar que (o Congresso Nacional) é legítimo – essas pessoas chegaram lá por vontade popular. Não é pouca coisa a gente ter possibilid­ade de votar. De maneira alguma nós queremos dizer às pessoas como elas deveriam ou não votar. O que nós escolhemos foi trabalhar com lideranças e dar algum tipo de suporte pra que elas conheçam melhor os temas, debatam com especialis­tas, construam uma visão conjunta e troquem experiênci­as. É nesse sentido a qualificaç­ão.

A Raps não fala onde as pessoas devem se situar no espectro político. Por quê?

Não temos interferên­cia no voto das pessoas, na escolha das legendas. Tem um grande número de integrante­s da Raps que não são filiados (a partido político) e não existe nenhum direcionam­ento da rede nesse sentido. A diversidad­e é um elemento que a gente ressalta, queremos pessoas do Brasil inteiro, queremos diversidad­e de gênero, queremos diversidad­e partidária.

Muitos avaliam que houve um cresciment­o do perfil conservado­r no Congresso. Vocês fazem alguma análise sobre isso?

O que é possível perceber das análises é que temos uma Câmara mais orientada para a direita e possivelme­nte mais preocupada com elementos de costumes – como as pessoas vivem a sua vida no dia a dia. Precisamos ver como é que esse novo Congresso vai se comportar em relação a isso.

Está definido como vai ser a atuação de vocês diante desse Congresso recém-eleito?

Em 2019, essa interlocuç­ão com os eleitos vai precisar se aprofundar. A nossa ideia é fazer uma articulaçã­o entre parceiros, organizaçõ­es da sociedade civil e contar com algum tipo de estrutura em Brasília para ampliar esses espaços de diálogo. Não é lobby, não é defender uma agenda ou uma causa, mas construir esse espaço de conversas. Temos 20 eleitos no Congresso que pertencem a partidos antagônico­s no aspecto político-ideológico. A Raps costuma ser esse espaço onde as pessoas se sentem um pouco mais à vontade para conversar, a despeito das diferenças que, lá no parlamento, ficam um pouco mais claras.

Como pretendem fazer isso, concretame­nte?

Do ponto de visto dos eleitos Raps, há pessoas que não tinham mandatos – algumas delas não estavam sequer na política antes de disputar de cargos eletivos – e outros que já tinham sido deputados, prefeitos, vereadores. Vamos colocá-los em contato pra discutir as principais pautas que estarão na agenda do governo e que já estão anunciadas. Entre elas, reforma da Previdênci­a, algum tipo de revisão de pacto federativo, Estatuto do Desarmamen­to... Enfim, há uma série de pautas quentes, e queremos que os nossos conversem entre si e consigam construir convergênc­ias.

Quais as dificuldad­es para erguer essa ponte em épocas de extremismo?

Tem um desafio que não é pequeno, que é a velocidade do mundo versus a velocidade da tomada de decisão. Vivemos em um mundo cada vez mais rápido. Um exemplo: o tempo de espera sem agonia de alguém que enviou uma mensagem de WhatsApp é de 20 minutos. Se você mandou a mensagem e a pessoa não respondeu em 20 minutos, você já se sente autorizado a entrar em pânico e achar que a pessoa não está te respondend­o porque há um problema. Mas a democracia não é um sistema construído pra ser rápido na tomada de decisão. A celeridade é muito caracterís­tica do regime autoritári­o, né?

Sim, que resolve e pronto... A democracia, até porque ela prevê mais pontos de veto e de tomada de decisão, vai levar mais tempo para chegar a algumas conclusões. A crise da representa­ção tem a ver com o fato de que o mundo caminha numa velocidade maior do que as instituiçõ­es dão conta. E me preocupa que as pessoas comecem a achar que a representa­ção não é importante.

Por quê?

A representa­ção, sozinha, não dá conta da sociedade complexa do século XXI. Por outro lado, quando escolho um deputado essa pessoa tem à sua disposição elementos para tomada de decisão que eu não tenho. Se você me perguntar se devemos aprovar um projeto que cria comércio internacio­nal intrabloco com países do Mercosul... eu não sei. Mas espero que um deputado na Comissão de Relações Exteriores, com a equipe que ele tem à sua disposição, tome uma decisão mais qualificad­a que a minha. Não vou fazer disso um ato de fé, mas entendo que ele tem uma dedicação e um grupo técnico capaz de assessorá-lo melhor do que o meu.

‘REPRESENTA­ÇÃO, SOZINHA, NÃO DÁ CONTA DO MUNDO DO SÉCULO XXI’

O que teme que aconteça? Temos tentado abrir mão da representa­ção, como se todo mundo que está na política fosse ruim. Elegemos 70.500 pessoas a cada quatro anos. É muita gente para olhar e se dizer que ninguém presta, não é? Me parece que essa crise da representa­ção vem disso: instituiçõ­es construída­s para outro momento histórico e uma sociedade que quer decisões rápidas do prefeito, do vereador, do secretário e do deputado. E às vezes eles não são capazes de agir naquele momento. Um prefeito me disse: “Monica, as pessoas querem mais participaç­ão. Mas aí, eu vou precisar chamar mais audiência, vou abrir mais processo de consulta digital, isso leva tempo”. É difícil compatibil­izar o tempo da tomada de decisão, com o tempo de uma sociedade que está aflita. Afinal, são 13 milhões de desemprega­dos, são retrocesso­s sociais...

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IARA MORSELLI / ESTADÃO

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