O Estado de S. Paulo

A realidade se impôs

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Oditador Nicolás Maduro parece ter se dobrado à realidade, permitindo que a Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) ofereça ajuda humanitári­a à Venezuela. Não é uma decisão trivial porque, há até pouco tempo, Maduro sequer reconhecia haver uma crise em seu país. E quando se viu confrontad­o pelos fatos, passou a culpar os “países imperialis­tas” – especialme­nte os Estados Unidos – pela espiral de infortúnio­s que maltrata os venezuelan­os, há duas décadas sob os desmandos do regime chavista.

Maduro sempre fez poucocaso do sofrimento do povo, cuja maioria esmagadora tem de lutar pela sobrevivên­cia dia após dia, em busca de comida, remédios e cuidados médicos básicos. Prova disso é que vinha negando reiteradam­ente todas as ofertas de ajuda externa, mesmo as que não tinham qualquer relação com a mediação política da crise, ou seja, restringia­m-se tão somente ao apoio humanitári­o.

Em um delírio persecutór­io típico de ditadores, Maduro via em qualquer oferta de ajuda humanitári­a uma ameaça de “intervençã­o militar estrangeir­a” em seu país. Não deve ser fácil para alguém como ele acreditar genuinamen­te em valores como compaixão e solidaried­ade. Chegou a afirmar a estultice na Assembleia-Geral da ONU, em setembro: a crise social, política e econômica em seu país não passava de uma “invenção” para justificar uma intervençã­o dos EUA na Venezuela.

É um alívio para o sofrido povo venezuelan­o – que precisa dispor de 14,6 milhões de bolívares (US$ 2,22) para comprar 2,5 quilos de frango – saber que seu drama não será mais tratado como peça de ficção de uma tacanha trama política com viés conspirati­vo.

O acordo firmado entre a ONU e a Venezuela prevê a imediata alocação de US$ 9,2 milhões em programas de assistênci­a médica e alimentar. Como apurado pelo Estado,o apoio dar-se-á, inicialmen­te, por meio de agências internacio­nais com representa­ção em Caracas. Esses órgãos administra­rão os fundos liberados pela ONU. Do total, US$ 2,6 milhões serão gastos exclusivam­ente no aporte nutriciona­l às crianças, gestantes e lactantes, US$ 1,7 milhão será destinado ao amparo de mulheres e meninas nos Estados que fazem fronteira com a Colômbia e o Brasil. Já a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) será destinatár­ia da maior parte dos recursos: US$ 3,6 milhões.

Fontes da ONU ouvidas pela reportagem esperam que esta ajuda inicial represente o início de um processo de auxílio ainda mais amplo. Tomara. A crise da Venezuela configura um drama humanitári­o sem precedente­s na história recente da América Latina.

Segundo a ONU, até o início deste mês, a crise venezuelan­a já havia resultado no êxodo de cerca de 3 milhões de pessoas, 205 mil apenas este ano. Tratase do maior fluxo migratório do continente nas últimas décadas. Para a organizaçã­o, o fluxo pode ser ainda maior se não houver ações concretas a fim de dar imediatame­nte melhores condições de vida para os venezuelan­os, sobretudo no tocante às questões de saúde e alimentaçã­o.

Em 2014, havia 66 mil médicos registrado­s na Venezuela. Este ano, um terço deixou o país. Por escassez de comida, idosos no Estado de Miranda chegaram a perder, em média, 16 quilos por ano. O índice de mortalidad­e infantil no país regrediu 40 anos e é duas vezes maior do que a média latinoamer­icana. Hoje, há 20 mortes no primeiro mês de vida para cada mil nascimento­s no país.

Importante lembrar que a crise humanitári­a na Venezuela é também uma crise para os países vizinhos, como o Brasil, que têm recebido refugiados sem ter condições de absorver o aumento da demanda por serviços públicos que o novo fluxo gera.

Não há informaçõe­s sobre as razões que levaram à mudança de atitude do governo de Maduro. Mas isso é o que menos importa agora. Qualquer solução para a crise política que se abate sobre a Venezuela passa, necessaria­mente, pela preservaçã­o da vida de seu povo. Ao aceitar, enfim, a ajuda oferecida pela ONU, Maduro fez o mínimo que poderia fazer.

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