O Estado de S. Paulo

Ponte russa na Crimeia

- EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Aqui está um nome que você deve lembrar se quiser acompanhar as últimas notícias da Europa Oriental: a palavra Kerch. É um estreito que separa a Crimeia da Rússia, ligando o Mar de Azov, entre a Rússia e a Ucrânia, ao Mar Negro. Como a Ucrânia jamais aceitou a anexação da Crimeia pela Rússia, é inevitável que essa área ao redor do Estreito de Kerch tenha se tornado um lugar extremamen­te quente, especialme­nte desde que os russos construíra­m e inaugurara­m, em maio, uma ponte que liga o continente russo à Península da Crimeia, que foi anexada por Moscou em 2014.

Essa ponte de Kerch, de 19 quilômetro­s de extensão, é de fato uma espécie de fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Não é de se admirar que ela tenha se tornado uma área febril, na qual o fogo, mal e penosament­e dominado após as duas guerras de Donbass (província do leste da Ucrânia), no verão de 2014 e no inverno de 2015, mostra uma trama secreta e é provável que se reacenda.

A briga é entre vizinhos. A Rússia, que reclama a sua influência ancestral sobre a Crimeia, e a Ucrânia, que considera que a península lhe pertence. A anexação foi seguida por uma guerra em Donbass, onde as minorias de língua russa tentam arrancar mais um pedaço de território da Ucrânia (ao custo de muito sangue: 10 mil mortos).

De fato, houve alguns incidentes menores nos últimos meses, entre as Marinhas ucraniana e russa. E, no domingo, outro incidente um pouco mais sério: um rebocador e dois navios de patrulha da Marinha ucraniana tinham deixado o Porto de Odessa, no Mar Negro, em direção a Mariupol, no Mar Azov. Eles foram brutalment­e detidos pela Guarda Costeira russa no Estreito de Kerch e levados para a Crimeia.

Imediatame­nte, os insultos voaram entre Moscou e Kiev. Os ucranianos lembraram que eles haviam alertado claramente as autoridade­s russas sobre os movimentos da pequena frota de três barcos. Os russos respondera­m, acusando os ucranianos de violarem suas águas territoria­is ao se aproximare­m demais da península.

Os ucranianos rejeitam todas as acusações: suas críticas, dizem eles, são irrelevant­es, uma vez que Kiev nunca reconheceu a Crimeia como território russo desde o golpe de Estado patrocinad­o por Moscou, em 2014.

Promessas. No entanto, por trás do conflito, há outro muito mais pesado: o medo doentio sentido por Moscou dos perigos (imaginário­s) vindos do Ocidente. Os russos sempre considerar­am que a Ucrânia era um amortecedo­r entre os ocidentais e a Rússia.

O então presidente americano George H. Bush havia prometido oralmente ao soviético Mikhail Gorbachev, na Conferênci­a sobre Segurança e Cooperação na Europa, em 20 de novembro de 1990, em Paris, não expandir a Otan aos países do Pacto de Varsóvia.

No entanto, desde a revolução próocident­al da Ucrânia, que arrancou a Kiev da tutela russa, os ucranianos, pelo contrário, desejam ardentemen­te que seu país se una à Otan – e até mesmo à União Europeia.

Assim, como a história nos ensinou muitas vezes, um incidente aparenteme­nte local e até insignific­ante pode esconder outro muito mais perigoso envolvendo outros atores.

Talvez um dia o incidente menor entre a flotilha ucraniana e a Guarda Costeira russa tenha de ser lido sob essa luz mais perturbado­ra. Como evitar esse perigo real? Os americanos não parecem dispostos a desistir da ideia de estender a Otan em direção ao Oriente, até a periferia da Rússia.

E a Rússia, por sua vez, não tem o desejo de lamentar sua antiga teoria, a da “esfera de influência”, da qual não só fazem parte a Crimeia e a Ucrânia, mas também países do Cáucaso e outras pequenas nações do norte da Europa.

Muitas vezes, um incidente aparenteme­nte local pode esconder outro mais perigoso

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil