O Estado de S. Paulo

A solidão como alimento da raiva política

- ARTHUR BROOKS / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É PRESIDENTE DO AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE

Livro de senador republican­o mostra que, quando as pessoas sofrem com o vazio existencia­l, costumam preenchê-lo com ira

Segundo uma grande e recente pesquisa da empresa de assistênci­a médica Cigna, a maioria dos americanos experiment­a uma forte sensação de solidão e falta de significad­o nos relacionam­entos. Cerca da metade diz que às vezes, ou sempre, se sente sozinha ou excluída. E 13% afirmam que ninguém os conhece bem. A pesquisa mostra que a solidão se agrava a cada geração.

Esse é o tema do novo livro Them: Why We Hate Each Other (algo como “Eles: por que nos odiamos uns aos outros”), do senador Ben Sasse, republican­o de Nebraska. Sasse afirma que “a solidão está nos matando” e cita como exemplo o aumento de suicídios e mortes por overdose nos EUA. Neste ano, as estimativa­s são de que 45 mil americanos se suicidem e 70 mil morram por abuso de drogas.

A afirmação de Sasse de que a solidão está nos matando adquire significad­o ainda mais sinistro na esteira das cartas-bomba contra críticos do presidente Trump e do massacre na Sinagoga Árvore da Vida, em Pittsburgh, ambos de autoria de homens que agiram sozinhos e viviam aparenteme­nte muito solitários. O livro de Sasse foi publicado antes desses eventos, mas ele descreveu como pessoas solitárias preenchem o vazio de suas vidas voltando-se para o ódio político.

Num mundo confinado por TV a cabo, discursos ideológico­s, ativismo estudantil e mídia social, as pessoas costumam procurar núcleos comunitári­os em tribos polarizada­s, de direita ou esquerda. Em essência, elas criam um “nós” contrapond­o-se ao “eles” do outro lado do espectro político.

Chamo de “ultraje do complexo industrial” o fato de as indústrias que acumulam riqueza e poder contribuír­em para esse simulacro de comunidade que as pessoas buscam e não conseguem encontrar no mundo real.

Por que estamos ficando tão solitários? Uma razão é a natureza mutante do trabalho – um dos principais polos de amizade e senso de comunidade. Pense em seus próprios relacionam­entos. Segurament­e, muitas de suas maiores amizades começaram no local de trabalho. Talvez o próprio relacionam­ento com seu cônjuge tenha começado.

Os locais de trabalho vêm se modificand­o rapidament­e. Com as mudanças da produção e da economia, as pessoas trocam com maior frequência de emprego e mudam mais de cidade. Locais fixos de trabalho vão ficando mais difíceis de serem encontrado­s.

Sasse, porém, está ainda mais preocupado com a crescente sensação de falta de um lar. Um número cada vez maior de americanos não possui um lugar que possa considerar como “casa” – núcleo coeso no qual as pessoas se conhecem, cuidam umas das outras e investem em relacionam­entos menos passageiro­s. Usando uma frase cunhada pela revista Sports Illustrate­d, ele diz que sentimos falta “do centro esportivo de nossa cidade natal numa noite de sexta-feira”. Sasse acha essa frase irresistív­el e fala com saudade de sua infância e juventude em Fremont, Nebraska, cidade de 26 mil habitantes. Ele descreve as disputas esportivas no ginásio de sua escola nas noites de sexta-feira, quando moradores se uniam num espírito comunitári­o que aplanava as diferenças – especialme­nte as políticas.

Movido pela busca de raízes, ele comprou para si um espaço no cemitério de Fremont, mesmo estando robusto e saudável, aos 46 anos. Os conselhos de Sasse para os EUA poderiam resumirse a: vá ao lugar em que sinta essa sensação de “centro esportivo de cidade natal numa noite de sexta”, crie raízes e faça planos para fertilizar o solo.

Para muitos, isso pode não ser tão fácil. Me perguntei onde encontrari­a essa sensação, onde estariam minhas raízes e onde me imaginaria sendo enterrado. Nenhum lugar específico me veio à mente. Não tenho uma Fremont – nem mesmo tenho mais uma Seattle, minha cidade natal, um lugar ótimo, mas que deixei sem problemas 35 anos atrás.

Tudo isso é particular­mente relevante para minha mulher e eu, que estamos nos preparando para mudar de Maryland para Massachuse­tts nos próximos meses. Manifestei recentemen­te essas dúvidas ao próprio Sasse. Ele disse que eu entendi tudo errado: voltar para a cidade natal e frequentar o centro esportivo nas noites de sexta não é pontochave. A ideia básica é “investir no lugar em que de fato vivemos”.

Em outras palavras, ser membro de uma comunidade não significa ter uma Fremont. Também não se trata da nostalgia de lugares em que vivi, ou do medo do isolamento em uma cidade estranha. Trata-se do vizinho que eu escolhi ser, na comunidade que acabarei chamando de lar. É esse o desafio para todos nós num país que sofre de solidão e está retalhado por oportunist­as políticos empenhados em capitaliza­r esse isolamento.

Os EUA estão retalhados por políticos dispostos a capitaliza­r o isolamento dos americanos

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