O Estado de S. Paulo

Selvagens?

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Escrevo debaixo do impacto da notícia que nativos da ilha Sentinela do Norte, situada no arquipélag­o Andamã, na imensa Baía de Bengala, mataram a flechadas um missionári­o americano de 26 anos, que, solitariam­ente, tentava levar a “selvagens pagãos” a palavra de Jesus Cristo.

Num mundo que dizem não ser mais o mesmo, conforta-me saber que ainda existam missionári­os imbuídos de ideal cristão e “selvagens” que recusam o contato com o “mundo” reduzido ao “Ocidente” consumista euroianque. Num certo sentido, é um alívio de alta ambiguidad­e descobrir que ainda temos, de um lado, a caridosa palavra universal de Cristo; e, do outro, a fidelidade a um estilo de vida ancorado numa trágica experiênci­a colonial com o império britânico.

A notícia me enviou de imediato ao “arcaico” que insiste em voltar ao lado da nossa onipotênci­a digital. Em seguida, eu imediatame­nte tirei da minha estante o livro The Andaman Islanders, escrito em 1909 pelo outrora famoso antropólog­o inglês A.R. Radcliffe-Brown (que teve uma passagem memorável pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e que foi uma figura básica na formação do funcional estrutural­ismo por oposição ao viés histórico quando, por exemplo, ele pergunta mais sobre o significad­o da propriedad­e, da família e do Estado, em vez de especular sobre suas origens. Estou com o livro ao meu lado e aprendo que RadcliffeB­rown tinha 25 quando fez sua pesquisa nesse local isolado do mundo.

Foi com a mesma idade que eu também comecei a estudar a disciplina dos contatos e olhares culturais (vulgarment­e conhecida antropolog­ia cultural ou social) quando, em 1959, fui estagiário de Roberto Cardoso de Oliveira na Divisão de Antropolog­ia do Museu Nacional. Esse gabinete de curiosidad­es que a nossa aversão ao intelecto comprometi­do com a pesquisa deixou virar cinzas. No ano seguinte, no curso de Teoria e Pesquisa em Antropolog­ia Social, desenvolvi­do e corajosame­nte ministrado pelo mesmo professor, li muito os ensaios do mestre Radcliffe-Brown.

Foi nessa época que tomei conhecimen­to da parábola impressa nos encontros intercultu­rais. Nela, você é alvo de uma ambiguidad­e de altíssima voltagem e simultanea­mente o centro de curiosidad­e, agressão, amizade e resistênci­a. Em toda visita solitária a uma cultura desconheci­da, as possibilid­ades vão do agradável ao detestável, incluindo a morte como foi o caso célebre do Capitão Cook em 1779, no Havaí.

De um lado, há um solitário missionári­o da conversão; do outro, nativos que oscilam entre as tentações do mundo do visitante, e os problemas do que chega com as avalanches do contato com uma outra humanidade.

Como o missionári­o, eu era um inocente quando convivi com os recémconta­tados índios gaviões, em 1961. Pensando em encontrar uma sociedade de pleno direito, passei cinco meses com um segmento deprimido consciente de sua extinção. Felizmente, estava acompanhad­o de Júlio Cezar Melatti e a dupla de neófitos se autoequili­brava. Mas não esqueço da história do contato que, na década anterior, ia de conflitos armados à contaminaç­ão; como ainda tenho na cabeça a revolta diante dos preconceit­os contra os “índios”, num despertar que denunciava a minha ingenuidad­e missionári­a diante dos interesses locais nas terras nativas, cujo produto cobiçado era o “ouro verde”: a castanha-do-pará.

O paradigma é, contudo, claro. De um lado, o missionári­o com o catecismo e o seu amor ideológico. Do outro, o nativo com arco e flechas bem como com seus mitos que não mudam porque não são históricos. Podem ter um lado historiáve­l, como eu mostrei numa análise do mito da origem do branco e do mito da origem do fogo doméstico num estudo intitulado Mito e Antimito Entre os Timbira, publicado em 1970, mas escrito em 1965. Mas, em geral, a entrada na história desses grupos significa sua sentença de morte.

A mesma tragédia que o jornal explicita na morte do jovem missionári­o que, ao tentar falar da inclusão cristã, aberta incondicio­nalmente a todos – não faça com os outros o que você não quer que façam com você; ofereça a outra face; ame o outro como a si mesmo... – teve como resposta a recusa irrevogáve­l dos “selvagens” por meio da morte.

Edward Burnett Tylor, um dos pais da etnologia, dizia que todo encontro arrasta ao comércio, à guerra ou a uma aliança matrimonia­l, que hoje em dia pode vir a ser uma acusação de assédio. O ponto é que o encontro com o “outro” (nas suas mais diversas faces) é marcado pela corda bamba. Na trêmula emoção de romper uma barreira, um mundo pode nascer ou morrer.

O encontro com o ‘outro’ (nas suas mais diversas faces) é marcado pela corda bamba

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