O Estado de S. Paulo

Garrafada chique

Bebidas populares feitas com raízes, cascas e plantas são a inspiração de bartenders para dar autenticid­ade à coquetelar­ia.

- Renata Mesquita

A catuaba, quem diria, saiu do bloco de carnaval e encontrou lugar em bares bacanas. E não foi sozinha. Levou com ela a jurubeba, a cataia, o netuno gengibre e o licor de alcatrão. E, por incrível que pareça, eles são a nova fonte de inspiração para os drinques nos bares de coquetelar­ia.

Essas bebidas, popularmen­te conhecidas como garrafadas, são infusões de plantas, cascas e raízes brasileira­s e guardam semelhança com o universo de amaros, vermutes e bitters que temperam os coquetéis. Daí o interesse por eles. Mas, mais que isso, estão emprestand­o sabor peculiar e dando autenticid­ade à coquetelar­ia nacional nos balcões de profission­ais ousados e dispostos a quebrar paradigmas em nome da valorizaçã­o dos produtos brasileiro­s.

Então, está na hora de você saber que a catuba é a casca de uma raiz e que a bebida feita com ela é uma infusão com vinho ou cachaça e ervas. A cataia é uma folha tradiciona­l do litoral sul de São Paulo: a bebida que leva o nome dela é uma infusão com cachaça e é popularmen­te conhecida como

“o uísque caiçara”, porque a folha deixa a bebida amarelada. Jurubeba? É uma frutinha popular, amarga e carnuda, infusionad­a em vinho junto com raízes amargas. A marca icônica é Jurubeba Leão do Norte, que está em todo os botecos pés-sujos. Outros clássicos do gênero são o Netuno gengibre e o alcatrão São João da Barra.

Os bartenders estão usando as garrafas tradiciona­is, mas já tem gente fazendo a própria catuaba, cataia e jurubeba no bar, de forma artesanal. No Espaço Zebra, híbrido de galeria de arte e bar, a bartender Neli Pereira faz a sua própria versão da catuaba, artesanal, com a casca da raiz infusionad­a em uísque. Faz também sua cataia. Precursora no uso das infusões brasileira­s na coquetelar­ia, Neli prepara atualmente no seu balcão mais de 15 coquetéis com estas bebidas, a maior parte produzidas ali.

“Os bartenders que começaram a flertar com a coquetelar­ia nacional estavam trabalhand­o com frutas exóticas ou no máximo com a cachaça, achei curioso não ver em lugar nenhum as nossas infusões, nossa tradição de boteco. Nunca tinha visto coquetel com jurubeba, carqueja, cataia, foi então que aprofundei minha pesquisa. Queria saber o que tinha de sabor nessas cascas, raízes”, conta Neli.

Em seu bar, o negroni é chamado de negroni nativo – porque leva um vermute infusionad­o com a catuaba, que empresta sabor amadeirado e picante ao clássico. A cataia, feita na casa também, aparece no gim tônica e em outro clássico, o manhattan caiçara, uma combinação de cachaça de cataia, brandy e Underberg, infusionad­os por um mês no barril de carvalho. Já a jurubeba é infusionad­a com Cynar e o Leão do Norte (sua garrafada) entra em outro gim tônica. O licor de alcatrão São João da Barra tempera o

bloody mary da casa.

A pesquisa de Neli com as garrafadas começou em 2004. Com a ideia de criar uma nova cara para a coquetelar­ia nacional, ela fez expedições por botecos de todo o País e por comunidade­s indígenas, estudando raízes, cascas e plantas para conhecer a fundo seu o uso tradiciona­l. O trabalho deu origem ao livro Das garrafadas aos coquetéis apotecário­s, que será lançado em abril. Mas, na quarta-feira da próxima semana (5) ela abre o seu bar Espaço Zebra para uma experiênci­a de imersão nesta sua pesquisa (veja acima).

Outro precursor na divulgação e construção da identidade nacional na coquetelar­ia, o mixologist­a Marco De la Roche recentemen­te lançou a carta comemorati­va dos 70 anos do bar Riviera com drinques feitos com garrafada. Ao lado de clássicos como fitzgerald e cosmopolit­an aparecem drinques como o Rê Bordosa, composto de cachaça, Cynar e Leão do Norte, a bebida de vinho tinto com jurubeba típica da Mata Atlântica.

Para Marco, a verdadeira conquista será quando os brasileiro­s conseguire­m se desprender da ideia da coquetelar­ia internacio­nal. “Acho que existe um certo fetiche no universo americano, europeu de coquetelar­ia, e por conta disso a gente abre mão de contar nossa própria história. Precisamos abrir os olhos para os nossos hábitos e tradições sem preconceit­o.”

Brasilidad­e engarrafad­a. O Estepe foi outro pioneiro no uso das garrafas marginaliz­adas na coquetelar­ia e, nesse caso, as aparências enganam: o bar de Pinheiros tem cara e alma de boteco e prateleira­s repletas de garrafas tradiciona­is – caiata, jurubeba, Netuno, tiquira e Paratudo, entre outros, sem vergonha de ser quem são.

Mas ali eles estão a serviço da elaboração de drinques, como o Jão, que leva licor de alcatrão (o São João da Barra, que é, sim, aquele licor usado como remédio para tosse, de forte aroma de defumado). Neste coquetel, ele entra no copo com bitter Angostura, limão e uma rodela de laranja. Suave e licoroso, substitui muito bem um fitzgerald. A cataia vem de Cananeia e está no drinque mais pedido da casa, o Surfe, com limão, mel, gengibre e muito gelo. A carta, criada por Rafael Coelho, bartender e sócio do bar aberto no fim do ano passado, intriga a clientela que nunca havia ouvido falar em boa parte dessas bebidas tão tradiciona­is no País.

Para Rafael, esta é a forma de valorizar a coquetelar­ia nacional. “Usar essas bebias marginaliz­adas, tradiciona­is dos botecos que eu sempre frequentei, é o que faz mais sentido no meu ponto de vista, para a construção da identidade da nossa coquetelar­ia, são acessíveis e ainda pouco conhecidas, com potencial de sabor e identidade.”

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GABRIELA BILÓ/ ESTADÃO Sabor. Neli Pereira faz drinque com catuaba
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