O Estado de S. Paulo

Obrador nem assume no México e já revê promessas

Esquerda no poder. Presidente eleito com maior votação da história democrátic­a do país assume cargo hoje, com capital político desgastado por pretender anistiar corruptos e manter o Exército nas ruas, o que descumpre dois de seus compromiss­os de campanha

- Verónica Calderón ESPECIAL PARA O ESTADO CIDADE DO MÉXICO / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Andrés Manuel López Obrador assumirá hoje o governo do México como o presidente mais votado na história democrátic­a do país. Ele substitui Enrique Peña Nieto, que deixa o poder com a maior desaprovaç­ão já registrada por um presidente mexicano em 30 anos. Apesar de ter crédito nas urnas, Obrador é pressionad­o por ter mudado de plano em duas importante­s promessas de campanha.

Obrador jogou o primeiro balde de água fria em seus eleitores há duas semanas, quando anunciou que perdoaria os corruptos do país para que se pudesse começar do zero. Em sua campanha, ele havia defendido uma anistia para certos delitos e penas, mas não para os corruptos.

Os escândalos de corrupção se acumulam, em um país onde 95% dos crimes denunciado­s ficam impunes, segundo dados da ONU. Somente um ex-governador, Javier Duarte, do PRI, é acusado de desviar US$ 170 milhões. A corrupção e a impunidade são as principais preocupaçõ­es dos questionad­os pelas pesquisas, mais do que a segurança e a economia, e o seu combate foi o lema da campanha de Obrador.

O anúncio do perdão foi feito no mesmo dia em que seu nome foi mencionado no processo contra Joaquín El Chapo Guzmán, o poderoso chefe do Cartel de Sinaloa. Uma das testemunha­s, o traficante Jesús El Rey Zambada, disse ao juiz ter entregue subornos a funcionári­os de todos os partidos políticos mexicanos, entre eles Gabriel Regino, advogado que participou da equipe de Obrador durante sua gestão como prefeito da Cidade do México, entre 2000 e 2006.

Obrador também prometeu uma anistia para narcotrafi­cantes, sem especifica­r como será o processo judicial envolvendo tal perdão e em que instâncias. Além disso, anulou outra de suas promessas de campanha, que era tirar o Exército das ruas.

Alguns dias antes de assumir o governo, ele fez as pazes com as Forças Armadas, um de seus alvos prediletos durante a campanha. Obrador acusava o Exército de vários crimes e de excessos de força e violência, em meio a aplausos e gritos dos seus seguidores.

Essas idas e vindas podem prejudicar Obrador logo na largada de seu governo. Os 53,1% que obteve em primeiro de julho de 2018 não têm precedente­s e não deixam dúvidas do respaldo sólido que tem. Mas o extenso período de transição entre um governo e outro, que no México dura cinco meses, desgastou seu capital político, na opinião do jornalista Raymundo Riva Palacio, um dos mais influentes do país.

“Muitas das decisões políticas de Obrador tiveram impacto na confiança interna e externa sobre o que será seu governo. Este período foi como estar em uma montanha-russa, pelos desacertos e contradiçõ­es, confrontos e insultos contra os que pensam diferente dele ou o criticam por suas declaraçõe­s e atos.” Riva Palacio resume em uma palavra o novo presidente: “populista”. Mas, mesmo assim, diz que ele merece o benefício da dúvida.

Tempestade. Em um país que enfrenta a pior crise de violência em décadas, um índice de pobreza que não diminuiu em 30 anos e uma crise diplomátic­a sem precedente­s com seu principal parceiro, os Estados Unidos, Obrador terá de usar seu capital político para resolver os desafios.

Mas o México enfrenta uma tempestade perfeita. O índice de assassinat­os no governo Peña Nieto aumentou de 22 para cada 100.000 habitantes para 25.

E a extensão do país não reflete a gravidade da violência em algumas regiões. Colima, Estado situado na costa mexicana do Pacífico, registra 113 assassinat­os para cada 100.000 habitantes, mais do que em Honduras, o país mais violento da América Latina.

“O caso do México não é um incidente, é uma tendência” afirma Jan-Albert Hootsen, representa­nte mexicano do Comitê de Proteção de Jornalista­s (CPJ). “Todos os índices indicam uma

situação espantosa”.

As dificuldad­es mexicanas se intensific­am na fronteira de mais de três mil quilômetro­s que separa o país dos Estados Unidos. O novo governo, que alardeia uma amizade com os principais líderes de esquerda da região, recebeu um respaldo de Donald Trump, que iniciou sua campanha para presidente dos Estados Unidos com a promessa de construir um muro entre os dois países e acusou os imigrantes mexicanos de serem “estuprador­es e criminosos”.

Os elogios da equipe de Trump, que enviará a maior delegação americana já vista na cerimônia de posse de um presidente mexicano, contrastam com as queixas da sociedade ante a crise humanitári­a na fronteira, onde milhares de centro-americanos são maltratado­s tanto pelas autoridade­s mexicanas como americanas.

A ironia chega a tal nível que, não fosse a Cúpula do G-20 que ocorre no mesmo momento da posse de Obrador, o próprio Trump comparecer­ia a um evento no qual que estarão presentes o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e o cubano Miguel Díaz-Canel.

O estilo de governo de Obrador é uma incógnita. Ele oscilou de um vigoroso apoio para o benefício da dúvida. “Não existe clareza”, diz Riva

Palacio.

Montanha-russa

“Muitas das decisões políticas de Andrés Manuel López Obrador tiveram impacto na confiança interna e externa sobre o que será seu governo. Este período foi como estar em uma montanha-russa, pelos desacertos e contradiçõ­es, confrontos e insultos contra os que pensam diferente dele” Riva Palacio

JORNALISTA MEXICANO

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