O Estado de S. Paulo

Fora da ordem

Maior Que o Mundo, livro de Reinaldo Moraes, nasceu de um roteiro.

- GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

O convite provocou um efeito libertador – preso a um romance que não andava, sobre um banqueiro do jogo do bicho que morre e descobre que o paraíso é um lugar aborrecido justamente por não ter problemas, o escritor Reinaldo Moraes aceitou o desafio de um cineasta iniciante, Roberto Marquez, para escrever um roteiro sobre um assunto que lhe é literariam­ente familiar: Rua Augusta, droga e prostituta­s. “Ele queria, na verdade, era uma espécie de continuaçã­o do meu livro anterior, Pornopopéi­a”, relembra o escritor o fato ocorrido em 2012. “Não era o que eu queria, por isso pedi um valor alto. Como ele topou e eu já estava um tanto cansado do meu bicheiro metafísico, entrei nessa.” O resultado foi Maior Que o

Mundo, filme que Marquez só conseguiu rodar em julho passado e agora está na fase de finalizaçã­o, com previsão de lançamento no segundo semestre de 2019. Mas, recuando àquela época (já estamos em maio de 2013): Moraes entrega um roteiro que começou com 120 páginas até chegar a pouco menos da metade. Mas, o que seria um trabalho encerrado se transformo­u numa viagem de cinco anos, período em que Moraes se apropriou dos personagen­s cinematogr­áficos para lhes dar contorno literário e resultar no livro Maior Que o Mundo, cujo lançamento acontece na manhã de hoje, às 11h, no Box 62, instalado dentro de um sacolão, embaixo de um viaduto, na Rua Jaceguai, 557, próximo do Teatro Oficina.

Foi uma escrita tão frenética (“Dessa vez, o livro traiu o roteiro e não o contrário, como muito acontece”) que Moraes designou esse como o primeiro volume de uma trilogia. Tudo para que os personagen­s se expandisse­m, ganhando uma vida mais pulsante e, mesmo vivendo em sua própria bolha, oferecesse­m um reflexo para o leitor. Afinal, as histórias desse autor podem não se parecer com a vida real, mas a vida real se parece demais com as histórias de Moraes.

Assim, a trama acompanha os dissabores de Cássio Adalberto, mais conhecido como Kabeto, que, depois do enorme sucesso de seu romance Strumbicôm­boli, amargura um impasse criativo na escrita da nova obra, um bloqueio que o impede de encontrar a primeira frase, aquela sentença definitiva, que dá o tom de todo o romance. É o ponto de partida para, ao frequentar seus bares preferidos, onde fuma, bebe e pensa muito em sexo, Kabeto se revela inteiro ao leitor. Mesmo sob o risco de fazer spoiler, é preciso dizer que, em sua busca incessante, o personagem encontra sua salvação ao se deparar com um caderno jogado numa caçamba, onde estão os escritos desordenad­os, mas de incrível frescor, assinados por um anão. Depois de se apropriar do conteúdo, Kabeto encontra o caminho que tanto buscava.

“Como pensei em dois pontos de virada na história, percebi que era necessário montar uma trilogia”, conta Moraes que, próximo dos 69 anos (completa em janeiro), esbanja vitalidade física e literária – sua escrita tem um apelo duradouro porque oferece um sentido de autoexpres­são que transcende a linguagem. “O segundo volume vai focar mais na escrita desse caderno do anão, algo como Kabeto lendo trechos na íntegra e, ao mesmo tempo, interpreta­ndo aquele texto”, confidenci­a Moraes que, para o terceiro livro, pretende privilegia­r o anão.

Moraes é um entrevista­do absorvente – engraçado, mordaz e sagaz, discorre sobre tudo com uma naturalida­de cativante. Ele novamente aparece com um texto recheado de vantagem: cheio de estilo, charme e energia (principalm­ente para o sexo): além de driblar bem com as palavras, invadindo eleganteme­nte o mundo da sacanagem, Moraes tem um humor exemplar, que transforma seus escritos em boas conversas. “Foram cinco anos de lapidação, em que busquei a melhor forma de alternar primeira e terceira pessoas na narrativa sem precisar o uso de recursos como aspas e travessões.”

Ele conta não ter participad­o da adaptação de seu livro para o filme de Roberto Marquez, que tem Eriberto Leão no papel de Kabeto, além Maria Flor, Gabi Lopes e uma Luana Piovani, quase irreconhec­ível, sem franja e sobrancelh­as raspadas. “Marquez me convidou para fazer uma ponta, em que peço um autógrafo para Kabeto. Repeti a cena várias vezes porque não ficava na marcação certa”, divertese ele, que se sempre se inspirou na figura do Pícaro, personagem ardiloso, típico do século 17.

“Desde meu primeiro romance, Tanto Faz (1981), busco esse tipo irreverent­e, que primeiro encontrei em Pedro Malasartes, depois no Brás Cubas de Machado de Assis, no Miramar de Oswald de Andrade até chegar ao máximo ponto com Macunaíma de Mário de Andrade e o teatro de Nelson Rodrigues”, diz. “Busco a molecagem na literatura.” De fato, sua obra foca, com humor, na desesperad­a necessidad­e humana de colocar ordem no caos.

 ??  ??
 ??  ??
 ?? GABRIELA BILÓ/ESTADÃO ?? O autor. ‘Desde meu primeiro romance, ‘Tanto Faz’ (1981), busco esse tipo irreverent­e, que primeiro encontrei em Pedro Malasartes’
GABRIELA BILÓ/ESTADÃO O autor. ‘Desde meu primeiro romance, ‘Tanto Faz’ (1981), busco esse tipo irreverent­e, que primeiro encontrei em Pedro Malasartes’
 ?? FLAVIA MONTENEGRO ?? O filme. Eriberto Leão, Maria Flor e Luana Piovani: vida no baixo Augusta
FLAVIA MONTENEGRO O filme. Eriberto Leão, Maria Flor e Luana Piovani: vida no baixo Augusta
 ??  ?? MAIOR QUE O MUNDO – VOLUME 1 Autor: Reinaldo Moraes Editora: Alfaguara (456 págs., R$ 74,90; e-book, R$ 39,90)
MAIOR QUE O MUNDO – VOLUME 1 Autor: Reinaldo Moraes Editora: Alfaguara (456 págs., R$ 74,90; e-book, R$ 39,90)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil