O Estado de S. Paulo

‘O GOVERNO DE CUBA NÃO ESTAVA INTERESSAD­O NA SAÚDE DO BRASILEIRO’

Um dos mais renomados médicos do País diz que programa foi necessário, mas que Brasil ficou nas mãos do governo cubano

- Drauzio Varella, médico

Para Drauzio Varella, o Mais Médicos foi necessário, mas deixou o País nas mãos do governo cubano. Agora, com a volta dos 8 mil profission­ais para aquele país, o programa corre o risco de acabar. A ruptura do contrato mostra que Cuba não tinha interesse pela saúde do povo brasileiro, disse a Morris Kachani.

Do dia para a noite, 8 mil cubanos abandonara­m suas vagas no Programa Mais Médicos, deixando desassisti­das as áreas mais vulnerávei­s do País. Para o médico Drauzio Varella, um dos mais renomados do Brasil, o Mais Médicos foi “o programa de interioriz­ação de maior alcance e duração” já desenvolvi­do e agora está ameaçado.

“Acho que o defeito foi ter deixado o programa na mão do governo de Cuba, porque podiam a qualquer momento romper o acordo, como de fato aconteceu”, afirma Drauzio.

Na entrevista a seguir, ele diz que o perfil dos médicos formados no Brasil – de classe média alta e predominan­temente feminino – dificulta a fixação do profission­al nas regiões do País que mais precisam. “Você acha que essas pessoas de classe média alta vão querer ir para esses lugares? Você tem uma filha, paga caro na faculdade dela, você quer que ela se forme para trabalhar no sertão de Alagoas?”

Qual é sua visão geral sobre o Mais Médicos?

O Mais Médicos foi o programa de interioriz­ação de maior alcance e duração. Nunca um programa alcançou tantas pessoas em território nacional e durou tanto tempo. Acho que o defeito foi ter deixado o programa na mão do governo de Cuba, porque o acordo podia ser rompido a qualquer momento, como aconteceu. E daí você tem mais de 8 mil médicos para substituir. Primeiro, surgiu essa situação com as declaraçõe­s do presidente (eleito) dizendo que os médicos eram ruins, que o programa era só para dar dinheiro para Cuba. E então, tiraram todo mundo de uma vez. Eles não podiam ter pego a gente de “calça curta”. Foi aberto o concurso, preenchera­m aproximada­mente 90% das vagas, e acham que foi um sucesso. Só que muitos fazem o concurso, se apresentam, se inscrevem e depois não vão. Ou não gostam da cidade para a qual foram designados, e uma série de outros problemas. Outros já trabalham no Estratégia Saúde da Família e largam para ter um salário melhor, o que desfalca o programa. Precisamos entender que tem muito chão entre fazer inscrição no programa e realmente conseguir ser designado para começar a trabalhar.

A solução de trazer médicos de Cuba foi inteligent­e? Deixando de lado a parte política e a questão sobre se está certo você mandar dinheiro para Cuba ou não, acho que foi uma solução possível. Não tínhamos médicos nesses locais.

Mas quando o programa foi lançado, em 2013, já não havia um número de brasileiro­s suficiente para cobrir esses lugares? Nós temos um contingent­e de médicos brasileiro­s suficiente para atender o País inteiro – são quase 500 mil médicos –, mas o problema é a concentraç­ão. Eles estão em São Paulo, Rio e nos grandes centros.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, colocou em questão a qualidade do médico cubano. Ele é capacitado para trabalhar aqui? Em Cuba tem um curso de quatro anos e, pelo meu entender, prepara para as coisas básicas. Para dar cuidados básicos você precisa ter um médico com formação em clínica médica e saúde da família, que é o que falta aqui. Nós não temos médicos preparados nessa área porque o pessoal não se interessa, eles querem fazer especialid­ade. O fato é que não tínhamos esses 8 mil médicos brasileiro­s dispostos a ir para esses lugares.

Mas agora eles subitament­e se interessam?

Quantas faculdades de Medicina abrimos desde o Mais Médicos? É um número muito grande. Atualmente formamos 20 mil médicos por ano. Vamos aumentar nos próximos seis anos e chegaremos a 38 mil médicos por ano. Você tem agora mais gente pra concorrer às vagas, ainda mais com o salário de R$ 11 mil reais em meio a essa crise. A questão hoje é que a maioria das faculdades de Medicina é particular e a maioria dos estudantes é mulheres, isso quer dizer que o perfil mudou. Tem faculdades que custam R$ 8 mil, R$ 10 mil, até R$ 15 mil por mês. Quem está cursando essas

faculdades é, no mínimo, a classe média alta, alunos que se formam gastando esse dinheirão. Você acha que essas pessoas de classe média alta vão querer ir para esses lugares? Você tem uma filha, paga caro na faculdade dela, você quer que ela se forme para trabalhar no sertão de Alagoas?

Os cursos são bons no Brasil? Não. É isso que eu acho engraçado, eles ficam falando da formação dos cubanos, mas não falam da dos brasileiro­s. Essas faculdades estão abrindo por interesses econômicos. Os cubanos que prestaram o Revalida tiveram o mesmo índice de aprovação que os não cubanos.

Você acha que o Mais Médicos está ameaçado?

Acho. Um programa de interioriz­ação em que você tira 8 mil médicos de um dia para outro, é o início de um drama. Ninguém estava preparado.

Se fosse pra ser bem feito, teria que ter um planejamen­to. Lógico. E também tem a sacanagem de Cuba, que não pode ser eximido da responsabi­lidade. Precisava ter dado um prazo. Isso mostra que eles não estavam interessad­os na saúde do povo brasileiro.

Mas você acha que teve uma inviabilid­ade do presidente novo? Sem dúvida. Os cubanos poderiam ter dito que não se dariam bem com o presidente, que não haveria entendimen­to. Mas deveriam ter pensado nas pessoas que estão sendo atendidas, ter fixado uma data.

Você conhece o Luiz Mandetta, escolhido por Bolsonaro para ser ministro da Saúde?

Não conheço. Ele fez uma declaração sobre aids que desgostou o pessoal da área (Mandetta disse não acreditar na eficiência de campanhas de prevenção realizadas em escolas e postos). Mas devemos aguardar, pois ele nem assumiu ainda.

“Quem está cursando essas faculdades (particular­es no Brasil) é, no mínimo, a classe média alta, alunos que se formam gastando esse dinheirão. Você acha que essas pessoas de classe média alta vão querer ir para esses lugares?”

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO-18/3/2017 Análise. Para Drauzio, cubanos ‘não estavam interessad­os na saúde do povo brasileiro’

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