O Estado de S. Paulo

Brasil acima de tudo

- MIGUEL REALE JÚNIOR ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

No centenário do fim da 1.ª Guerra Mundial, no mês passado, em Paris, o presidente francês, Emmanuel Macron, foi incisivo ao condenar o nacionalis­mo, por ser justamente o oposto ao patriotism­o, a ponto de o trair. Mitterrand já dissera que o nacionalis­mo é a guerra. De Gaulle tem frase famosa distinguin­do patriotism­o de nacionalis­mo, valendo repetir seu ensinament­o: “Patriotism­o significa que o amor por seu próprio povo vem em primeiro; nacionalis­mo, todavia, consiste que o ódio aos demais povos vem em primeiro”.

Becker e Krumeich, dois autores, um francês e o outro alemão, em obra conjunta, La Grande Guerre – Une Histoire Franco-allemande, decifram o núcleo da 1.ª Guerra Mundial, que, a seu ver, foi uma guerra entre França e Alemanha, tendo por palco seus território­s e por vítimas principais, seus filhos. Originou-se ela em sentimento­s de vingança, fruto de um nacionalis­mo irracional que nada tinha que ver com a vivência de valores de cada uma dessas nações. O nacionalis­mo foi a sua causa.

O patriotism­o, enquanto compreensã­o do próprio modo de ser ao longo da História para afirmação de uma individual­idade aberta ao diálogo com as demais pátrias, revela-se generoso. O nacionalis­mo, no entanto, fecha-se como uma religião laica, no dizer de Vargas Llosa, para em atos de fé encarar outras nações como inimigas.

Na contramão do presidente francês está o nosso presidente eleito, que se filia ao nacionalis­mo belicoso, à moda de Trump.

O slogan do presidente eleito, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não é apenas uma frase de efeito propagandí­stico. Revela-se, nesse dístico, uma contraposi­ção inicial: o Brasil acima de todos vem a ser, sob o viés internacio­nal, uma declaração de supremacia em face dos demais países, e o reconhecim­ento apenas de uma única outra força maior, superior, a de Deus.

A Nação estará a serviço de Deus e todos estarão a serviço de ambos, da Nação e de Deus. O que deveria ser um compromiss­o subjetivo a brotar da convicção íntima de cada qual se socializa na missão de engrandece­r o Brasil para a glória de Deus. Desfaz-se o Estado laico.

Assim, não poderia ser outro o novo chanceler, cujas ideias, expressas no artigo Trump e o Ocidente (Cadernos de Política Exterior, ano III, n.º 6, 2.º semestre de 2017, pág. 323), se casam com o pan-nacionalis­mo do governo Bolsonaro. Nesse artigo defende ardorosame­nte o nacionalis­mo, ataca o cosmopolit­ismo, os órgãos multinacio­nais e considera os Estados Unidos a única sede legítima de resistênci­a do que entende por “valores ocidentais”, pois estes se identifica­m com a fé cristã, que teria morrido na Europa, mas viceja nos EUA. A seu ver, a Europa é um espaço culturalme­nte vazio regido por valores abstratos.

O clima de confronto instalase ao não realçar o chanceler o entendimen­to entre as nações como projeto, como atividade, pois destaca uma retrospect­iva: seu olhar é para trás, em enaltecime­nto aos antepassad­os e à criação dos mitos. No seu modo de ver, o Ocidente não nasceu no diálogo nem na tolerância, mas sim na defesa de sua própria identidade cristã.

Os valores, a seu ver, só existem dentro de uma nação, no seio de uma cultura, e não no que chama de “éter multilater­al abstrato”. Para ele, a identidade surge nas nações e o nacionalis­mo é indissociá­vel da “essência do Ocidente”. E ressalta: o centro do Ocidente está não numa doutrina econômica ou política, mas no anseio por Deus, no Deus que age na História. Um pan-nacionalis­mo atuará pela família, pela liberdade, pelo país e por Deus. E a defesa desses valores dependerá da saúde e robustez nas nações. O Estado-nação é o veículo melhor para elevar a condição humana, diz o novo chanceler.

Esse o ideário anti-iluminista no qual a grande conquista da História europeia, o Estado Democrátic­o de Direito, não é considerad­a valor nuclear do Ocidente. O conceito universal, genérico, de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e têm capacidade para gozar esses direitos e liberdades, sem distinção de espécie alguma, torna-se de menor relevo em face da visão orgânica de comunidade em que se desenrola a História na qual “Deus age”.

Importante­s são, portanto, valores e crenças forjados em determinad­o território, bem como a família, os heróis míticos do país e Deus, a serem preservado­s e louvados pelo Estado-nação. Nesse diapasão, não poderia deixar de haver desprezo pelo cosmopolit­ismo, visto como um complô para dissolução dos valores do Ocidente, hoje assegurado­s unicamente pelo nacionalis­mo norte-americano, merecendo desconside­ração as decisões da Corte de Direitos Humanos ou os documentos da Comissão Europeia...

Em nova entrevista, o neocruzado diz que combaterá pautas abortistas e anticristã­s, bem como alarmismos climáticos.

Já se fez sentir sua influência, na medida em que o Brasil, às vésperas da reunião da 24.ª sessão da Conferênci­a das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a se realizar Polônia, para implementa­r o Acordo de Paris, desistiu de sediar a reunião de 2019.

Foi uma decisão de Bolsonaro, por não desejar em reunião no Brasil vir a anunciar a saída do Acordo de Paris em defesa do interesse nacional, pretextand­o prejuízo decorrente do projeto Triplo A. Esse é um projeto controvert­ido de corredor ecológico no norte da América do Sul, de 136 milhões de hectares, dos Andes ao Atlântico, proposta de fundação colombiana que nada tem que ver com o Acordo de Paris. Já se sente, portanto, o prejuízo da simbiose entre o presidente eleito e seu chanceler, antimultil­aterista, em prejuízo da imagem positiva do Brasil, pioneiro no cenário internacio­nal em defesa do meio ambiente.

Esse retrocesso casa com a cultura relegada a segundo plano, entregue a um ministro que nessa área apenas sabe tocar berimbau.

A Nação estará a serviço de Deus e todos estarão a serviço de ambos, da Nação e de Deus

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