O Estado de S. Paulo

Trauma craniano

- E-MAIL: fernando@reinach.com

Desde pequeno, tenho fascinação pelo homem de Neandertal. Só imaginar que milênios atrás vivia entre nós outro animal quase igual aos humanos me deixava arrepiado. Na escola me contaram que eram mais atarracado­s, mais musculosos e mais agressivos que os humanos, segurament­e não teriam alma como nós.

Imaginava o medo do ser humano ao encontrar esse ser, que com uma clava na mão atacava nossos ancestrais indefesos, roubando crianças pequenas. Quando foi descoberto que nossos ancestrais faziam sexo e tiveram filhos com esse outro hominídeo, minha imaginação alçou novos voos.

Outro dia uma criança me perguntou se esses bastardos teriam alma. Tudo isso era fruto da imaginação infantil. Na verdade, hoje se acredita que os homens contribuír­am para a extinção dos neandertai­s, mais uma espécie vítima de nossa expansão.

Grande parte do nosso imaginário sobre neandertai­s deriva da descoberta de marcas e cicatrizes nos ossos dos primeiros crânios achados. Essas marcas indicavam que muitos desses animais levavam vida violenta, em que eram seriamente feridos, mas que sobrevivia­m, como indicavam os ossos regenerado­s. Foi daí que veio a ideia que provavelme­nte eram violentos.

Mas agora um grupo de cientistas resolveu investigar se essa conclusão, baseada nos primeiros esqueletos encontrado­s, correspond­e à verdade. Para isso resolveram comparar os ossos de neandertai­s com os ossos de humanos que viviam na mesma época, ou seja, entre 80 e 20 mil anos atrás. E para que a comparação fosse estatistic­amente significat­iva era preciso comparar o maior número possível de esqueletos.

Assim, foram analisados esqueletos coletados pela Europa, Oriente Médio e Ásia. São desde ossos achados em Portugal, passando por ossos coletados pela Itália, França Alemanha, Israel e Rússia. No total, são 836 partes de esqueletos, fragmentos de ossos, crânios e fragmentos de crânios que foram desenterra­dos em 76 localidade­s. Para ser incluído no estudo só era necessário que os indivíduos tivessem vivido no Paleolític­o Superior e pudessem ser claramente identifica­dos como de neandertai­s ou de humanos.

Cada um desses ossos foi examinado para identifica­r marcas que indicassem fraturas, tanto as já cicatrizad­as quanto as que pudessem ter levado à morte do indivíduo. Esses ossos pertenciam a 114 indivíduos neandertai­s e 90 humanos. Os resultados foram inesperado­s. De 295 ossos de crânios de neandertai­s, 14 tinham marcas de fraturas e dos 541 ossos de crânios humanos da mesma época, 25 apresentav­am marcas de trauma. Só isso já mostra que humanos daquela época se machucavam tanto quanto neandertai­s. Analisando os dados com cuidado foi possível concluir que a prevalênci­a de traumas em neandertai­s e humanos era praticamen­te idêntica, por volta de 4%.

Usando só os esqueletos em que o sexo do indivíduo podia ser determinad­o, cientistas descobrira­m que os homens apresentav­am mais sinais de traumas que as mulheres, mas também nesse caso os números eram iguais entre humanos e neandertai­s. A única pequena diferença entre os dois grupos foi a descoberta que entre jovens, representa­dos por esqueletos menores, a taxa de lesão era um pouco maior entre neandertai­s, mas isso tem pouca significân­cia estatístic­a.

A conclusão é que na época em que conviveram, humanos e neandertai­s levavam vidas cheias de riscos, onde se machucavam muito, e que a taxas de traumas nas duas populações eram praticamen­te idênticas. Muitos acreditam que grande parte das lesões ocorria durante a caça de grandes animais, usando armas de curto alcance, como lanças e espadas, mas provavelme­nte também envolviam agressões entre grupos e dentro do próprio grupo. Para ambos, a vida campestre não era idílica.

Com base nesses resultados, é necessário mudar o que contamos aos alunos sobre os neandertai­s. O mais correto seria dizer que eles, apesar de mais encorpados que os humanos, experiment­avam um nível de violência e trauma semelhante aos humanos que foram seus contemporâ­neos.

Quem sabe não seriam os neandertai­s mais doces, pacíficos e amorosos que os humanos da época? Talvez tenham sido extintos exatamente por serem pouco agressivos. Será difícil mudar o que se fixou na minha imaginação, mas talvez as crianças de hoje possam imaginar neandertai­s pacíficos colhendo flores para a família enquanto temiam a aproximaçã­o de um humano.

Na época em que conviveram, humanos e neandertai­s levavam vidas cheias de riscos

MAIS INFORMAÇÕE­S: SIMILAR CRANIAL TRAUMA PREVALENCE AMONG NEANDERTHA­LS AND UPPER PALEOLITHI­C MODERN HUMANS. NATURE. (2018)

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