O Estado de S. Paulo

Caderno2 De humor a religião

Jô Soares fala de fé em segunda parte de autobiogra­fia.

- Ubiratan Brasil

O primeiro volume, lançado no ano passado, tinha o vermelho como cor dominante na capa e refletia bem o conteúdo: uma sucessão alucinante de fatos envolvendo o biografado e as inúmeras personalid­ades com quem dividiu ao menos um momento na vida. A segunda parte de O Livro de Jô: Uma Autobiogra­fia Desautoriz­ada (Companhia das Letras) chega agora embalada por um tom azulado, mais calmo, que também condiz com as histórias ali narradas por Jô Soares, humorista, apresentad­or, escritor, ator, diretor, pintor e cantor, que completa 81 anos em janeiro. “Esse volume traz mais histórias pessoais que o anterior”, reconhece ele, em conversa realizada em seu apartament­o no bairro de Higienópol­is, mais precisamen­te em sua maravilhos­a biblioteca particular, que soma exatas 4.197 obras catalogada­s, todas com uma marca d’água especialme­nte criada para ele.

De fato, a primeira parte de sua vida, entre seu nascimento em 1938 até o final dos anos 1960, tema do primeiro volume da biografia, é marcada por detalhes de sua formação como homem e artista. Já o livro recémlança­do, apesar de cobrir o período mais importante de sua vida (a chegada à Globo, a perseguiçã­o da censura militar, a consagraçã­o como humorista e a opção por se tornar entrevista­dor), é recheado de fatos que provavelme­nte apenas amigos mais próximos sabiam.

Como sua religiosid­ade, intensific­ada por influência da primeira mulher, a atriz Theresa Austregési­lo, e pelas dificuldad­es que ambos passaram com o filho, Rafael, que nasceu com autismo. Também contribuiu o processo que sofreu, em 1969, do regime militar, incomodado com um bem-humorado texto sobre as várias utilidades da cama, publicado no semanário satírico Pasquim. De uma fase tão conturbada, aliás, Jô coleciona o que considera um dos momentos mais emocionant­es de sua vida: uma carta de apoio, datilograf­ada e assinada por Carlos Drummond de Andrade, que foi usada em sua defesa.

“Eu não tinha formação espiritual tão intensa, mas fui sendo influencia­do por Theresa, e as dificuldad­es iniciais com o Rafinha nos aproximara­m ainda mais nesse sentido”, escreve Jô. “O fato de estar sendo processado pelo regime militar havia me deixado inseguro; se fosse condenado, seguir minha profissão se tornaria difícil, duas condenaçõe­s poderiam me levar à prisão ou eu seria obrigado a me autocensur­ar, o que é o mesmo que decretar o fim da carreira de humorista.”

Por conta disso, Jô fez o Cursilho, um processo de evangeliza­ção, que o fez rever a própria fé. Isso o aproximou de diversos religiosos, entre eles, D. Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo emérito de Olinda e do Recife e grande defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar. “Uma pena que hoje seja tão esquecido”, lamenta Jô, em sua biblioteca. Ele conta que, como era ministro da Eucaristia, pediu ao padre para que o ajudasse, em uma certa missa, a distribuir a hóstia sagrada. Curiosamen­te, a fila para receber a oferenda das mãos do humorista era maior. “Você está fazendo uma concorrênc­ia muito grande, desviando meus fiéis”, divertiu-se D. Hélder.

Assim como o primeiro volume, Jô contou, também nesse segundo, com a inestimáve­l ajuda do jornalista Matinas Suzuki Jr., que comandou as 147 sessões de conversas gravadas, durante quatro meses. “Sobrou muita coisa, mas o essencial está aí”, conta o humorista que, no livro novo, destaca a importânci­a de vários parceiros em sua carreira. “Para quem trabalha com humor, o sucesso começa com o parceiro, que deve ser o primeiro a achar graça”, ensina ele, que dividiu a cena com talentos como Paulo Silvino, Agildo Ribeiro, Eliezer Motta, entre outros. “Silvino era maluco no bom sentido, sempre disposto a fazer brincadeir­as no camarim. Já o Agildo era um humorista imbatível: engraçadís­simo, sabia como poucos o tempo do humor.”

Jô também homenageia Max Nunes, médico que se tornou um dos maiores escritores humoristas do País. Juntos, criaram personagen­s clássicos como Norminha, a cantora suburbana em busca da fama, a atriz pornô Bo Francineid­e e o dr. Sardinha, ministro inspirado em Delfim Netto. Criaram também bordões logo adotados pela população, como “O macaco tá certo”. Nunes também alertava Jô a deixar de andar de moto, que lhe provocou dois acidentes. “Se há algo que me arrependo na vida, foi não ter parado antes”, conta ele, ainda com planos para os próximos 80 anos. “De imediato, uma peça com Beth Coelho e outra com o ator e produtor Giovani Tozi, inspirada no filme À Meia-Luz.” TV? “Por ora, nada. Mas não abro mão de nenhuma perspectiv­a.”

Aprendi que, para quem trabalha com humor, o sucesso começa com o parceiro, que deve ser o primeiro a achar graça”

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO
 ?? GABRIELA BILÓ/ESTADÃO ?? Em casa. Jô, em sua biblioteca particular, que soma exatos 4.197 volumes
GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Em casa. Jô, em sua biblioteca particular, que soma exatos 4.197 volumes
 ?? REPRODUÇÃO MARCOS VILAS BOAS/ACERVO JÔ SOARES ?? Sátira.Em 1979, ao lado de Delfim Netto, que inspirou o Dr. Sardinha
REPRODUÇÃO MARCOS VILAS BOAS/ACERVO JÔ SOARES Sátira.Em 1979, ao lado de Delfim Netto, que inspirou o Dr. Sardinha
 ?? REPRODUÇÃO SBT/ACERVO JÔ SOARES ?? D. Hélder Câmara. Entrevista feita em 1988, no SBT
REPRODUÇÃO SBT/ACERVO JÔ SOARES D. Hélder Câmara. Entrevista feita em 1988, no SBT
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O LIVRO DE JÔ – V. 2 Autores: Jô Soares e Matinas Suzuki Jr. Editora: Companhia das Letras (584 págs., R$ 69,90)

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