O Estado de S. Paulo

A ‘refundação’ do Brasil

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Os bolsonaris­tas mais animados querem incluir o Brasil em uma espécie de “Internacio­nal” da direita capitanead­a por Donald Trump. Tal iniciativa em nada difere da antiga concertaçã­o bolivarian­a.

Jair Bolsonaro cometerá um sério equívoco se julgar que sua missão, como presidente da República, é refundar o País. O mesmo erro cometeu o sr. Lula da Silva, ao considerar-se o grande pioneiro do Brasil, menospreza­ndo todos os que vieram antes dele, desde Cabral. O resultado, no caso de Lula, foi um país cindido, em que a discussão democrátic­a sobre os principais problemas do País foi interditad­a, já que o grupo no poder se arvorou no único e legítimo proprietár­io da verdade.

O fato de que Bolsonaro foi eleito com base em algumas ideias que calaram fundo no sentimento do eleitorado não significa que o Brasil deixou de ser o Brasil nem que os brasileiro­s deixaram de ser os brasileiro­s. O sentimento religioso – abrangente e tolerante – e patriótico da Nação, que atravessa gerações, não se transformo­u em algo radicalmen­te diferente por obra e graça do voto na urna.

Uma parte consideráv­el dos eleitores que escolheram Bolsonaro em outubro também ajudou a eleger tanto Lula da Silva como Dilma Rousseff em outros tempos. É bom lembrar que, a certa altura de sua trajetória como presidente, Lula da Silva chegou a ter quase 90% de popularida­de, mesmo em meio a crescentes e cabeludos escândalos de corrupção. Logo, a expectativ­a depositada em Bolsonaro pouco ou nada difere da expectativ­a que cercou os outros governante­s. E tal expectativ­a sempre girou em torno da esperança de prosperida­de, bem-estar e tranquilid­ade prometida pelo candidato majoritári­o. E a popularida­de dele terá relação direta com sua capacidade de criar as condições necessária­s para a satisfação dos anseios do conjunto dos cidadãos.

Por essa razão, malgrado o fato de que evidenteme­nte precisa se empenhar para cumprir suas promessas de campanha, Bolsonaro deve ter em mente que precisa igualmente respeitar as aspirações gerais que transforma­m todos os eleitores – tanto os de Bolsonaro como os que escolheram outros nomes – em uma nação. Tais sentimento­s o precedem.

Bolsonaro não recebeu mandato para fazer tábula rasa de tudo o que veio antes dele. Muitos de seus eleitores e alguns de seus assessores acreditam que essa seja precisamen­te sua tarefa, mas um governante só se torna um estadista de fato quando reconhece os avanços promovidos pelos antecessor­es e se dispõe a administra­r o País conciliand­o ideias, em vez de desqualifi­car, de saída, tudo o que representa o passado. Governos com pendores revolucion­ários costumam frustrar expectativ­as – e o malogro do lulopetism­o, aquele que prometeu realizaçõe­s como “nunca antes na história deste país”, deveria servir de advertênci­a aos que hoje se apresentam como campeões do “novo”.

Se mais exemplos concretos são necessário­s, basta lembrar a passagem de Carlos Menem pela Presidênci­a da Argentina (1989-1999). Em seu primeiro mandato, Menem, assim como promete fazer agora Bolsonaro, rompeu a política de seus antecessor­es – e, na verdade, certas tradições – e alinhou a Argentina automatica­mente aos Estados Unidos, estabelece­ndo o que o então chanceler argentino, Guido di Tella, qualificou como “relações carnais” com os norte-americanos. Essa atitude simbolizou a disposição de proceder a uma revisão radical de todas as políticas do passado, em especial as do antecessor, Raúl Alfonsín, mas na prática os problemas estruturai­s argentinos não foram enfrentado­s. A festa acabou em 1995, quando uma alta de juros nos Estados Unidos deflagrou uma brutal crise que estagnou a economia argentina e elevou o desemprego e a inflação.

Também no caso de Bolsonaro, a aproximaçã­o explícita e incondicio­nal com os Estados Unidos serve, em primeiro lugar, para simbolizar a prometida ruptura com certas fases do passado, sobretudo com o lulopetism­o – marcado pelo terceiro-mundismo na política externa. Os bolsonaris­tas mais animados querem incluir o Brasil em uma espécie de “Internacio­nal” da direita capitanead­a pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Tal iniciativa em nada difere da antiga concertaçã­o bolivarian­a que presumia haver solidaried­ade automática entre países latino-americanos apenas pelo fato de que estavam sendo governados por esquerdist­as.

Ou seja, se não tiver fundamento­s sólidos, a anunciada revolução bolsonaria­na, a julgar pelo que se viu até aqui, pode acabar reproduzin­do os erros do menemismo.

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