O Estado de S. Paulo

‘O presidenci­alismo de coalizão não vai acabar’

O que Bolsonaro quer, avisa sociólogo, é conexão direta com políticos e fim da porteira fechada

-

Jair Bolsonaro toma posse daqui a 29 dias “com uma base completame­nte diferente e uma agenda nova” mas continuará precisando de apoio para aprovar seus projetos. “Isso significa que o governo de coalizão não vai desaparece­r. Mas as conversas decisivas passam a ser com bancadas, e não com lideranças partidária­s tradiciona­is”, enfatiza o cientista político Murillo de Aragão nesta entrevista a Gabriel Manzano.

A agenda do presidente eleito, nesta semana, inclui reuniões com cerca de 100 parlamenta­res das principais legendas, em Brasília, “e isso mostra que os partidos não serão abandonado­s”, destaca o analista. “O que está saindo de cena, sim, é o controle de lideranças do Congresso sobre nomeações. O que acaba é o critério de porteira fechada”.

Doutor em Ciência Política e Sociologia e dono da ArcoAdvice, que faz pesquisa e análise de políticas públicas em Brasília, Aragão já começa a preparar sua viagem a Nova York – onde todo início de ano, em janeiro e fevereiro, dá aulas de política brasileira na Universida­de de Columbia. No seu balanço sobre o que muda e o que fica na cena política do País com o novo presidente, ele destaca: “Teremos um governo que vem com a chancela da Lava Jato”. E que traz “não só uma renovação de pessoas, mas também de costumes”.

Como explicar uma transição tão tranquila depois de se falar tanto em “ruptura” com o que havia antes?

Temos de fato uma transição muito positiva. Para começar, não há uma incompatib­ilidade ideológica entre o governo que sai e o que entra. Há uma continuida­de na economia e nada do atrito que aconteceu na passagem de Dilma Rousseff para o Temer. Naquela ocasião não houve a menor boa vontade de se passar informaçõe­s.

Mas há diferenças claras. Quais destacaria?

Primeiro, Bolsonaro chega com uma base política completame­nte diferente da que havia e que era a tradiciona­l do meio político brasileiro. Segundo, agora há um viés ideológico – não chega a ser conflito, mas é algo mais à direita do MDB histórico. Terceiro, ele traz muitos quadros que não eram do círculo de poder, gente outsider ou do baixo clero. Por fim, um quarto ponto, essencial: vem com a chancela da Lava Jato. De certa forma, diria que este “é” um governo da Lava Jato. Se essa operação do MP e da PF atrapalhou os governos Dilma e Temer, agora ela vai ajudar o governo Bolsonaro. É uma diferença devastador­a. E tem mais: o que veremos agora será um governo dialogando não com partidos, mas com bancadas. Esses pontos não são padrão na nossa história parlamenta­r.

Diria que o presidenci­alismo de coalizão está no fim?

Não, não vejo assim. O presidenci­alismo de coalizão no Brasil não vai acabar por causa do modo Bolsonaro de governar. Eles vão precisar de coalizões para aprovar projetos e emendas importante­s. Como não temos um partido com maioria absoluta em ambas as casas, a criação de uma base torna a negociação inevitável. O que há de novo nessa relação é o esvaziamen­to do poder dos caciques tradiciona­is. E, junto a isso, o fim da fórmula “porteira fechada” para nomeações. Resta saber se vai funcionar, né?

Bolsonaro reúne-se nos próximos dias com cerca de 100 parlamenta­res dos principais partidos. Não lhe parece que é “mais do mesmo”?

Não me parece. Imagino que as pautas não terão conexão com interesses dos partidos. O que se percebe é que o presidente quer conexão direta com o Congresso, mostrar que os políticos não serão abandonado­s. Claro, essa iniciativa ajuda a bloquear algum movimento – já se falou nisso... – para isolar o PSL nas duas casas.

O governo FHC, nos anos 90, dialogava com bancadas...

Mas havia menos partidos do que hoje. E quem agrega votos, hoje? São as bancadas. Há dezenas delas – as mais organizada­s são a ruralista, a evangélica, a de segurança pública, a da saúde e a dos funcionári­os públicos. Algumas vezes elas superam o poder de mobilizaçã­o das lideranças partidária­s. Manter a ligação com elas vai ser um fator decisivo.

A conversa constante com o Legislativ­o exige pragmatism­o, concessões. O risco de atritos vai fazer parte desse jogo, não? Apesar de o apoio popular ao eleito ser relevante, esses riscos não podem ser desprezado­s. O apoio de bancadas é um bom ponto de partida mas talvez não seja suficiente. Os partidos vão continuar decidindo na divisão dos cargos das mesas diretoras e das principais comissões técnicas. Aí, se o governo não estiver bem articulado com sua base política poderá ter surpresas. Exemplo: setores do atual Centrão podem se aliar ao PT para reagir a essa estratégia, visando construir certa autonomia nas duas casas. Ou seja, o Executivo terá que demonstrar perícia na coordenaçã­o dos grupos.

Você falou, anteriorme­nte, num custo e curva de aprendizad­o da nova equipe. O que quer dizer? Que eles vão pagar o preço da inexperiên­cia. Novo governo pressupõe novo modelo de diálogo, nova organizaçã­o do Executivo, dos ministério­s, trazendo gente de fora do sistema... O governo terá que aprender. A Dilma Rousseff, por exemplo, nunca aprendeu.

Além disso a equipe é diversific­ada, não? Os estilos de Sergio Moro, Hamilton Mourão, Paulo Guedes ou Ernesto Araújo não chegam a ser harmônicos... Sim. E outro ponto é que o governo vem com bandeiras quentes da campanha eleitoral que agora terão de ser transforma­das em políticas concretas. Custo e curva de aprendizad­o são exatamente isso. Transforma­r intenções em realidades.

E quanto ao presidente? Ele tem um currículo político discreto, mas ao mesmo tempo é focado, sabe o que quer. Como será esse encaixe entre o que ele tem para dar e o que o País precisa? Apesar de não ter sido um político do alto clero, Bolsonaro sempre teve uma identifica­ção com seu eleitorado – tanto que retornou seguida vezes ao mandato no Congresso. Foi fiel a esse eleitorado e este lhe deu a base para chegar à Presidênci­a. Ser do baixo clero não significa incompetên­cia, significa apenas que ele não entrava no jogo das lideranças. E, como ressaltei, sua atuação é, de certa forma, ligada à Lava Jato – afinal, ela esvaziou um sistema político e com isso inviabiliz­ou qualquer candidatur­a do establishm­ent. Agora, ao virar presidente, ele assume uma postura mais prudente. Aquela testostero­na toda que exibiu na campanha vai dando lugar a coisas mais pragmática­s.

Por exemplo?

Ele quer manter um controle bem próximo de duas questões fundamenta­is. A primeira, a fiscal, que é gravíssima, principalm­ente nos Estados e municípios. A segunda, a da segurança pública. Nesse sentido, ele quer empoderar dois núcleos do poder, Paulo Guedes e Sergio Moro. Vamos ver se o modelo dará resultado. Ele busca um comando bastante próximo, para jogar junto.

Há quem ache suspeita a apregoada renovação do Congresso, dizendo que ele é sempre o mesmo no controle de seus espaços. Essa renovação do Congresso é um fenômeno vinculado à rotina política anterior. Mas o fator Lava Jato significa alguém no Ministério da Justiça avisando: “Olha, as regras de comportame­nto são outras agora”. O novo Legislativ­o vai se dar conta de que o jogo mudou.

Naquele ambiente de luta por verbas, por votos, por cargos, o que significa “mudou”?

Que não é só uma renovação de pessoas, mas também de costumes. Essa eleição traduziu o resultado de uma tomada de posição da sociedade. O eleitorado foi buscar um candidato de fora do establishm­ent político – também no caso de alguns governador­es e muitos deputados – e espera deles um novo tipo de comportame­nto. Esse é o primeiro ponto. O segundo é saber se esse Congresso vai ser reformista. Cabe lembrar que, de um modo geral, o Legislativ­o tem sido, sim, reformista.

Faz parte desse cenário uma esquerda fazendo o que gosta – oposição – e o PT tentando se reerguer. Que força a oposição poderá ter?

O primeiro ponto a mencionar é que a esquerda brasileira é arcaica, uma esquerda do século 20 – mais na sua primeira metade –, que enveredou pelo populismo, o clientelis­mo, o ideologism­o... O PT deixou-se contaminar por isso tudo. Numa visão ideal, eledeveria fazer a autocrític­a dos erros que praticou, entender a necessidad­e de o Brasil ter um ambiente progressis­ta para os negócios, não só em direitos e garantias, mas também na geração de empregos, de negócios, como os outros países são. E que, para o bem do País, não atuasse de forma radical contra o debate das reformas. Mas o que foi que vimos? Que eles jogaram todas as cartas na “hipótese Lula”. Não deu certo. Antagoniza­ram-se com outras forças de esquerda e o que temos hoje é uma profunda desconfian­ça entre os três principais blocos dessa área – PT, PSB e PDT..

‘NÃO É SÓ UMA RENOVAÇÃO DE PESSOAS, MAS DE COSTUMES’

E ainda vão enfrentar a raiva do Ciro Gomes pelo caminho... Sim, e o que o Ciro e o Cid Gomes fizeram é a prova disso. Deram o troco por tudo o que o PT lhes fez. Agora o partido terá de se reinventar para não se transforma­r num partido menor. Mas essa reinvenção é dramática. O PT se transformo­u numa religião e quebrar dogmas é muito complicado.

Você preside o Conselho de Comunicaçã­o Social do Congresso. O que será da comunicaçã­o no novo governo?

O governo Temer conseguiu avançar numa significat­iva agenda de reformas, mas teve uma trágica gestão na comunicaçã­o. Bolsonaro usa bem as redes sociais, mas comunicaçã­o é bem mais que imprensa e redes sociais. Exige visão estratégic­a, manter a população informada e uma base de sustentaçã­o mobilizada. Um exemplo: a reforma da Previdênci­a tem de ser encarada como uma questão política, fiscal, social e de comunicaçã­o. Sem comunicaçã­o eficiente, ela não passará.

 ?? ARQUIVO PESSOAL ??
ARQUIVO PESSOAL

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil