O Estado de S. Paulo

Imoralidad­e

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OSenado vai aplicar a seus servidores já neste mês, inclusive para o 13.º salário, o novo teto remunerató­rio do funcionali­smo público, estabeleci­do após vergonhoso arranjo entre Executivo e Judiciário.

Como não há insulto ao qual não se possa adicionar a injúria, o Senado decidiu aplicar a seus servidores já neste mês, inclusive para o 13.º salário, o novo teto remunerató­rio do funcionali­smo público. Estabeleci­do depois de vergonhoso arranjo entre os Poderes Executivo e Judiciário, o novo teto deveria valer somente a partir do ano que vem, mas a Mesa do Senado resolveu favorecer desde já os servidores que hoje acumulam vencimento­s que superam o limite atual, de R$ 33,7 mil, e portanto estão sujeitos ao desconto do chamado “abate teto” – mecanismo que corta do salário tudo o que supera aquele limite.

Com o novo teto, de R$ 39,2 mil, esses servidores receberão agora o que os ministros do Supremo Tribunal Federal, para os quais o aumento salarial se aplicava originalme­nte, só ganharão em 2019. Nem é o caso de discutir aqui se o impacto disso no Orçamento será grande ou pequeno; o que chama a atenção é que, ao comportame­nto deplorável dos sindicalis­tas de toga e à leniência do Executivo, soma-se o oportunism­o do Legislativ­o, cuja ânsia de aumentar os contracheq­ues criou um inusitado “efeito cascata invertido” – em que a consequênc­ia do aumento do teto do funcionali­smo acontece antes mesmo de seu próprio fator gerador.

Tal desfecho é condizente com todo o processo que resultou no aumento para os ministros do Supremo. O País testemunho­u, impotente, a nata do Judiciário desfigurar a Constituiç­ão para obter o reajuste salarial que reivindica­vam.

Primeiro, por meio de uma liminar, o Supremo estendeu a concessão do auxílio-moradia para todos os magistrado­s e procurador­es do País, mesmo para aqueles que possuem imóvel na cidade em que trabalham. Não faltaram ministros que se dispuseram a insultar a inteligênc­ia do contribuin­te ao tentar justificar tamanha desfaçatez, quando já estava claro que o auxílio-moradia estava sendo de fato incorporad­o ao salário.

A manobra ficou ainda mais explícita quando o Supremo, na negociação com os demais Poderes, ofereceu barganhar o fim do auxílio-moradia pela incorporaç­ão desse valor ao salário. Um verdadeiro quid pro quo, expressão latina para o famoso toma lá dá cá. Ou seja, o Supremo criou um problema para vender uma solução.

E nada impede que isso possa voltar a ser feito no futuro, já que, como salientou o ministro Luiz Fux, autor da liminar que havia presentead­o todos os magistrado­s do País com o auxílio-moradia, “a Constituiç­ão é um documento vivo, em constante processo de significaç­ão e ressignifi­cação”. Ou seja, sempre que houver necessidad­e, o Supremo encontrará justificat­ivas hermenêuti­cas para impor seus interesses corporativ­os, fazendo para isso a leitura constituci­onal que lhe aprouver.

A decisão do Senado de aplicar desde já um aumento salarial que só deveria ser pago no ano que vem é a consequênc­ia lógica do pensamento segundo o qual o interesse do corpo de funcionári­os públicos estará sempre acima dos interesses dos contribuin­tes que o sustentam – sempre sob o argumento de que esses servidores estão a desempenha­r papel crucial para o bom funcioname­nto do País e, por isso, merecem tratamento diferencia­do em relação ao resto dos trabalhado­res. Como a ilustrar esse ponto, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, argumentou que o reajuste serviria para “resgatar a dignidade da magistratu­ra” e que, sem o aumento, “a magistratu­ra para”. E o ministro perguntou: “Quem é que vai pôr as pessoas na cadeia? Eles vão se ‘auto-pôr’ na cadeia?”.

Nem é preciso lembrar que os servidores públicos, com destaque para os do Judiciário, já são, na média, os trabalhado­res mais bem pagos do País; tampouco é preciso recordar que tanto os juízes como os legislador­es brasileiro­s estão entre os mais bem remunerado­s do mundo, com benefícios que não se encontram em nenhum outro lugar. O mais importante a salientar em tudo isso é a total incapacida­de dessas corporaçõe­s de entender a dura situação do País, com alto desemprego e contas públicas em frangalhos. O fato de que podem, numa canetada, atender a seus interesses trabalhist­as não significa que devam fazê-lo.

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