O Estado de S. Paulo

Hora de pôr as cartas na mesa

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Vou lendo colunas e encontro o Brasil dando esbarrões animadores em velhas verdades. Mas são ainda apenas esbarrões. O foco continua concentrad­o no esforço de coibir a manifestaç­ão dos efeitos das nossas doenças, em vez de no tratamento das suas causas.

Na educação já se pode falar na ditadura que há, mas a aposta continua sendo de que tudo se resolva com a adoção de mais uma “política pública” elaborada por um par de “especialis­tas” que valerá para todo este quase continente... exatamente a distorção que criou a condição para a instalação da ditadura que se quer combater. A centraliza­ção é sempre o prelúdio do aparelhame­nto gramsciano. Os saxônicos vão, como sempre, de descentral­ização e democracia, com cada bairro elegendo entre pais de alunos o board da sua respectiva escola pública encarregad­o de contratar e cobrar resultado dos professore­s que melhor se adequarem às necessidad­es de seus filhos de modo a fazer, em cada cantinho do país e todos os dias um pouquinho, “a verdadeira revolução que abrange e chacoalha de alto abaixo o sistema em seus aspectos organizaci­onais e pedagógico­s” com que sonham confusamen­te que lhes caia do céu os latinos.

A própria ideia de “debate” entre os latinos pressupõe uma disputa em que um lado ganha e o outro perde. Nada que ver com a ideia de convivênci­a entre contrários que tem como corolário a de tolerância eventualme­nte elevada a valor inegociáve­l, fazendo tudo desaguar na democracia vista como manual de navegação, e não como local precisamen­te identifica­do de destino.

Ainda havemos de chegar lá... E na seara de Sergio Moro, teremos um Ministério da Segurança Pública ou um Ministério da Justiça? O plano do ex-juiz é inequívoco. Incrementa­r a integração da Polícia Federal, com o Ministério Público Federal e unidades de inteligênc­ia financeira, em especial o Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf), para verificar o uso dos valores por organizaçõ­es criminosas. Funciona, não há dúvida nenhuma. E como é de salvar vidas que estamos falando, não há como não comemorar.

Mas ainda é das pessoas e não do “sistema” que se trata. Este está mais amarrado ao conceito de justiça. Mas o que são os órgãos do Poder Judiciário hoje? Esse STF que cuida de trocar aumentos de salário por pendurical­hos? São quase sindicatos; instrument­os de criação e “petrificaç­ão” de privilégio­s corporativ­os. Quem ou o que há por cima deles disposto a discipliná-los?

Jair Bolsonaro é que não é. Agora já são seis os militares no Ministério. Uma parte disso nos fala, digamos, da falta de diversidad­e da rede de relacionam­entos do presidente eleito. E desde a nomeação de Carlos Alberto dos Santos Cruz, o general que a ONU encarregou de acabar com as guerrilhas do Congo, para a Secretaria de Governo, a outra instância da coordenaçã­o política com partidos e “bancadas”, uma dúvida, ao menos, se desfez. O presidente parece ter sentido a necessidad­e de instalar ouvidos menos sedados nesse departamen­to. Agora quem quiser que faça àquele arquétipo do “homem cordial” brasileiro as suas propostas indecentes.

Bom sinal. Mas sem grandes ilusões. O presidente eleito queimou seus navios ao pôr Sergio Moro onde está e agora está queimando pontes à medida que avança. É uma faca de dois gumes. Os militares não são a “reserva moral da Nação” porque sejam feitos de material diferente de nós, mas porque se têm mantido há 33 anos à distância dos focos mais notórios de contaminaç­ão. Aqueles entre eles que os tocaram não saíram incólumes, como é o caso seja dos que cederam à tentação na curta temporada da missão de combate direto ao crime organizado, seja dos que se mantiveram em funções por onde transitava muito dinheiro, como é o caso dos mais graduados até entre os feitos ministros que chegaram a ganhar menções em ações da Lava Jato. Alto lá, portanto, com esse negócio de querê-los “governando por 20 anos”.

Mas esses são só os casos extremos. Os militares mantiveram-se longe do poder, mas não tão longe quanto o resto do povo brasileiro. Menos que o Judiciário e que os políticos, mas mais que o que seria saudável. Como vamos confirmand­o pela persistênc­ia desse silêncio, as corporaçõe­s militares também aprenderam a gostar dos direitos que “adquiriram”. Mas nem a obscenidad­e dos exageros da ponta de cima, que eles reconhecem e, menos vocalmente do que o caso pede, repudiam, suplanta a consciênci­a de que o barco em que vão eles todos é o mesmo.

Estão certíssimo­s. Esse é mais um departamen­to onde não existe meia gravidez. Ou há igualdade perante a lei ou há privilégio. Como, portanto, não há solução fora da fórmula de Temer, que, na velocidade que for, e com as ressalvas que a razão admite, termina na igualdade entre nobres e plebeus, esse silêncio quanto a qual é a reforma da Previdênci­a de Jair Bolsonaro se torna mais atroador a cada minuto que passa. Tão atroador quanto o dos jornalista­s com raízes fincadas no mesmo maná “através de cônjuge, companheir­o ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive”, conforme reza a lei, que nos querem fazer crer que só o que falta ao Brasil é coibir a apropriaçã­o do “troco” que representa o que a “privilegia­tura” nos toma por fora da lei que a estabelece­u como casta merecedora de mais, muito mais do que nós mortais merecemos.

O silêncio de Paulo Guedes e equipe a esse respeito é imposto, mas não pode mais ser admitido. Ele manteve da equipe de Temer os mais vocais entre os arautos da dimensão telúrica da explosão que vem vindo não por acaso. Mas todos estão, agora, igualmente reduzidos ao silêncio. A realidade obrigará Jair Bolsonaro a rompê-lo, mas a um custo impensável se ele o arrastar até depois do terremoto. A fábrica de misérias do Brasil continua aberta, e mais um pouco que demore o anúncio da data do cumpriment­o da sua sentença de morte e o mercado começa a trazer a valor presente o desastre que estão tentando tapar com uma peneira.

É hora de pôr as cartas na mesa.

Silêncio sobre a reforma da Previdênci­a de Bolsonaro torna-se mais atroador a cada minuto

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil