O Estado de S. Paulo

Obra entrou para a história como marco de resistênci­a à ditadura

- Maria Eugênia de Menezes

Antes de se lançar à literatura como romancista, Chico Buarque aventurou-se no teatro. Ao longo de 25 dias, trabalhand­o dia e noite, escreveu aquela que seria sua primeira peça: Roda Viva.O espetáculo, no entanto, se tornaria muito mais conhecido pelas reações extremadas que suscitou do que como obra artística. Era o ano de 1968 e o endurecime­nto do regime militar, que culminaria com o AI-5, já estava em curso.

Nesse sentido, a remontagem de Roda Viva é uma oportunida­de não só de revisitar questões históricas, mas também de descobrir um espetáculo feroz e intenso. Um ponto de inflexão na carreira do compositor – que até então era considerad­o um “bom moço”, autor de A Banda – e também do diretor José Celso Martinez Corrêa – que dava os passos definitivo­s para se tornar um dos maiores nomes do nosso teatro.

A violência que cerca Roda Viva é conhecida. Após uma bem-sucedida temporada carioca, a peça foi alvo de um ataque quando chegou ao Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Após o fim de uma apresentaç­ão, homens do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiram os camarins, perseguind­o os atores. Marília Pêra, que ocupava o papel que havia sido de Marieta Severo no Rio, foi despida e espancada pelos agressores. Em Porto Alegre, os ataques persistira­m. Dois intérprete­s foram sequestrad­os e o restante do grupo expulso da cidade por soldados do Exército.

Roda Viva foi censurada e entrou para a história como marco de resistênci­a à ditadura. Ainda que a trama imaginada pelo autor tivesse bem pouco de política: a peça girava em torno da trajetória do músico Benedito da Silva, que a indústria do entretenim­ento havia transforma­do no americaniz­ado Ben Silver. Desconfort­ável com a posição de ídolo popular e o assédio dos fãs, Chico escreveu uma paródia daquilo que observara nos shows e nos festivais de música da TV Record.

Tratava-se, na verdade, de uma crítica ao show business. No limite, um olhar para o impacto do sistema capitalist­a sobre a arte. Mas a montagem de Zé Celso e a cenografia de Flávio Império fizeram do espetáculo um manifesto pela liberdade. E também uma pequena revolução estética.

Um ano antes, em 1967, o diretor havia encenado O Rei da Vela, criação que refletia a realidade do País e também do teatro moderno brasileiro. Com Roda Viva, ele tratou de amadurecer uma série de novos procedimen­tos cênicos. A formação em coro adquiriu importânci­a vital na sua obra a partir desse momento. A virulência de sua proposta também se acentuou.

Nunca se tinha visto nada tão provocativ­o: Os atores estraçalha­vam um fígado cru, cujo sangue respingava sobre os presentes. Sem compreende­r tamanha ira, o crítico Anatol Rosenfeld classifico­u o que viu como “teatro agressivo”. Testemunha­va, sem saber, o nascimento de uma cena muito mais ligada à performanc­e dos que às formas tradiciona­is de representa­ção.

Outra novidade (talvez a maior delas) estava na forma de estruturar o espaço. De um lado, Flávio Império pôs a imagem de um São Jorge; do outro, uma garrafa gigante de Coca-Cola. O cenógrafo e figurinist­a rompeu os limites entre o palco e a plateia: aproximou fisicament­e o que acontecia na peça dos espectador­es. Não havia mais como se proteger. Império arrancou o público de sua passividad­e, lançou todos no ritual pagão e selvagem que era Roda Viva.

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