Quando me falha a memória
Já de longe ela estampou um sorriso, e com ele veio na minha direção, varando o povaréu que atravancava o hall da Sala São Paulo. Eu até mereço, às vezes, um sorriso assim, mas pensei: não é comigo.
Pois foi na minha frente que ela estacou, radiante:
– Eu estava para te escrever! – anunciou, exclamativa, enquanto meu penúltimo neurônio esquadrinhava os miolos, em ritmo de motoboy, na agoniada tentativa de lembrar quem era a moça, por sinal bonita.
Sem desarmar o sorriso, contou que tinha lido uma crônica minha, adorado, onde é que você arranja ideia para escrever essas coisas? – e, ao me chamar pelo nome, agravou a situação: não estava me confundindo com outro cronista, com o Ivan Angelo, sei lá, com o Verissimo (não deixo por menos).
– Qual crônica? – perguntei, como se isso pudesse me tirar do aperto – e aí foi a moça que embatucou, recolhendo o sorriso e convocando às pressas seus próprios neurônios, para ao cabo de uns segundos admitir: não estava se lembrando.
Eu deveria ter ficado ainda mais arrasado: não só ando esquecido como o que escrevo é miseravelmente esquecível. Mas não; baixou em mim uma satisfação rasteira – e, num arroubo de mesquinho revanchismo, me rejubilei: a memória dela não está assim tão melhor que a minha!
A minisculidade liliputiana do meu sentimento deve ter transparecido no rosto, pois a moça voltou à carga:
– Você não está me reconhecendo, né?
Dois a um para ela.
– A Conceição – identificou-se. Como só o prenome não esclarecesse, eu estava vendo a hora em que só me restaria improvisar-me em Cauby Peixoto e entoar, ali no meio do povo, com ligeira licença poética: – Conceição, eu NÃO me lembro... Em vez disso, recorri ao bom senso: olha aqui, Conceição, eu não estou me lembrando de você, você não está se lembrando da minha crônica, que tal a gente começar tudo de novo? – e estendi a mão, prazer, prazer. Para deixar claro que não tenho a pretensão de me passar pelo Ivan Angelo ou pelo Verissimo, estendi também um cartão. Ela não tinha um para trocar, mas ficou de me escrever, de mandar o título da crônica. Espero que não se esqueça. Parece que é mesmo a Conceição. Mas qual delas, ó Senhor?
*
Se bem me lembro, não é a primeira vez que escrevo sobre problemas com a memória mais e mais bruxuleante. Chegou o tempo, amigos, em que preciso deixar recado para mim mesmo na secretária eletrônica, e encostar na porta de saída o que tenha de levar para o mundo. Sabe Deus o que mais me espera. Talvez venha aí o dia em que vou circular com um barbante mnemônico atado ao indicador – e não garanto que não vá então me perguntar: o que isso está fazendo no meu dedo?
Tenho, na família, antecedentes preocupantes. Aquela prima de quem antes ria e com a qual me sinto mais que nunca aparentado. Uma vez, numa roda de mães, ela enumerava a filharada, e de repente empacou: como era o nome daquele do meio? O jeito foi pedir socorro ao marido. Filho do meio como, meu bem? – suspirou ele –, se nós temos quatro?
Em outra ocasião, saiu do banho enrolada na toalha e foi, cantarolante, pendurá-la no quintal, para em seguida, com as prendas ao vento, exposta ao pasmo dos prédios vizinhos, retornar à casa, ante o olhar esbugalhado da cozinheira, do marido e das crianças. Quando um dos filhos (não o do meio) deu um berro, o que fez a prima? Deu meia volta e foi recolher a toalha no varal.
Fosse ela a única na família, mas não: tem aquele que se vestiu às pressas e, de pé no ônibus, percebeu que algo lhe escorregava perna abaixo, até apontar sob a barra e amontoar-se no peito do pé: a cueca da véspera, que esquecera dentro da calça. Boa dupla faria com a irmã, que, ao adentrar certa manhã o escritório, elegantíssima, levava no cangote, qual echarpe, uma toalha de rosto.
Para não mencionar a tia que pegou um pé d’água na rua, depois das compras numa loja de tecidos, e, quando foi abrir a sombrinha, percebeu que a esquecera no balcão – e mais: que em lugar dela trouxera o sarrafo centimetrado, de inconfundível cor amarela, usado para medir pano. Desastre semelhante ao da amiga que, em Paris, caminhou quarteirões até se dar conta de que levava no ombro uma camiseta que saíra sem pagar, num involuntário furto que àquela altura lhe pareceu arriscado tentar remediar.
Mesquinharia à parte, me serve de consolo um episódio vivido em Paris pelo ainda jovem Sebastião Salgado. Ia haver uma cerimônia num dos pisos da torre Eiffel, e, como não coubesse ali muita gente, escolheu-se um único fotógrafo para registrar o evento, com o compromisso de repassar as imagens às demais agências. Chegou com atraso, esbaforido, fez rapidamente as fotos e voou para o laboratório – onde, aterrado, percebeu que se esquecera de pôr filme na máquina. E lá fora do quartinho o esperavam, além do patrão, representantes das agências concorrentes! Salgado só não arrancou os cabelos porque já não os tinha.
E há, por fim, o caso daquelas senhoras de minhas relações, para lá de outoniças, que arrastavam chinelinhas pelo parque em vacilante caminhada, uma amparada na outra, pulando de assunto em assunto ao sabor de memórias mais e mais despovoadas.
– Que fim levou Carmelita Moreira?
– Sou eu – informou a outra, sem estranhar a pergunta.
*
Mas por que mesmo estou eu contando essas histórias?
Chegou o tempo em que preciso deixar recado para mim na secretária eletrônica