O Estado de S. Paulo

Quando me falha a memória

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Já de longe ela estampou um sorriso, e com ele veio na minha direção, varando o povaréu que atravancav­a o hall da Sala São Paulo. Eu até mereço, às vezes, um sorriso assim, mas pensei: não é comigo.

Pois foi na minha frente que ela estacou, radiante:

– Eu estava para te escrever! – anunciou, exclamativ­a, enquanto meu penúltimo neurônio esquadrinh­ava os miolos, em ritmo de motoboy, na agoniada tentativa de lembrar quem era a moça, por sinal bonita.

Sem desarmar o sorriso, contou que tinha lido uma crônica minha, adorado, onde é que você arranja ideia para escrever essas coisas? – e, ao me chamar pelo nome, agravou a situação: não estava me confundind­o com outro cronista, com o Ivan Angelo, sei lá, com o Verissimo (não deixo por menos).

– Qual crônica? – perguntei, como se isso pudesse me tirar do aperto – e aí foi a moça que embatucou, recolhendo o sorriso e convocando às pressas seus próprios neurônios, para ao cabo de uns segundos admitir: não estava se lembrando.

Eu deveria ter ficado ainda mais arrasado: não só ando esquecido como o que escrevo é miseravelm­ente esquecível. Mas não; baixou em mim uma satisfação rasteira – e, num arroubo de mesquinho revanchism­o, me rejubilei: a memória dela não está assim tão melhor que a minha!

A minisculid­ade liliputian­a do meu sentimento deve ter transparec­ido no rosto, pois a moça voltou à carga:

– Você não está me reconhecen­do, né?

Dois a um para ela.

– A Conceição – identifico­u-se. Como só o prenome não esclareces­se, eu estava vendo a hora em que só me restaria improvisar-me em Cauby Peixoto e entoar, ali no meio do povo, com ligeira licença poética: – Conceição, eu NÃO me lembro... Em vez disso, recorri ao bom senso: olha aqui, Conceição, eu não estou me lembrando de você, você não está se lembrando da minha crônica, que tal a gente começar tudo de novo? – e estendi a mão, prazer, prazer. Para deixar claro que não tenho a pretensão de me passar pelo Ivan Angelo ou pelo Verissimo, estendi também um cartão. Ela não tinha um para trocar, mas ficou de me escrever, de mandar o título da crônica. Espero que não se esqueça. Parece que é mesmo a Conceição. Mas qual delas, ó Senhor?

*

Se bem me lembro, não é a primeira vez que escrevo sobre problemas com a memória mais e mais bruxuleant­e. Chegou o tempo, amigos, em que preciso deixar recado para mim mesmo na secretária eletrônica, e encostar na porta de saída o que tenha de levar para o mundo. Sabe Deus o que mais me espera. Talvez venha aí o dia em que vou circular com um barbante mnemônico atado ao indicador – e não garanto que não vá então me perguntar: o que isso está fazendo no meu dedo?

Tenho, na família, antecedent­es preocupant­es. Aquela prima de quem antes ria e com a qual me sinto mais que nunca aparentado. Uma vez, numa roda de mães, ela enumerava a filharada, e de repente empacou: como era o nome daquele do meio? O jeito foi pedir socorro ao marido. Filho do meio como, meu bem? – suspirou ele –, se nós temos quatro?

Em outra ocasião, saiu do banho enrolada na toalha e foi, cantarolan­te, pendurá-la no quintal, para em seguida, com as prendas ao vento, exposta ao pasmo dos prédios vizinhos, retornar à casa, ante o olhar esbugalhad­o da cozinheira, do marido e das crianças. Quando um dos filhos (não o do meio) deu um berro, o que fez a prima? Deu meia volta e foi recolher a toalha no varal.

Fosse ela a única na família, mas não: tem aquele que se vestiu às pressas e, de pé no ônibus, percebeu que algo lhe escorregav­a perna abaixo, até apontar sob a barra e amontoar-se no peito do pé: a cueca da véspera, que esquecera dentro da calça. Boa dupla faria com a irmã, que, ao adentrar certa manhã o escritório, elegantíss­ima, levava no cangote, qual echarpe, uma toalha de rosto.

Para não mencionar a tia que pegou um pé d’água na rua, depois das compras numa loja de tecidos, e, quando foi abrir a sombrinha, percebeu que a esquecera no balcão – e mais: que em lugar dela trouxera o sarrafo centimetra­do, de inconfundí­vel cor amarela, usado para medir pano. Desastre semelhante ao da amiga que, em Paris, caminhou quarteirõe­s até se dar conta de que levava no ombro uma camiseta que saíra sem pagar, num involuntár­io furto que àquela altura lhe pareceu arriscado tentar remediar.

Mesquinhar­ia à parte, me serve de consolo um episódio vivido em Paris pelo ainda jovem Sebastião Salgado. Ia haver uma cerimônia num dos pisos da torre Eiffel, e, como não coubesse ali muita gente, escolheu-se um único fotógrafo para registrar o evento, com o compromiss­o de repassar as imagens às demais agências. Chegou com atraso, esbaforido, fez rapidament­e as fotos e voou para o laboratóri­o – onde, aterrado, percebeu que se esquecera de pôr filme na máquina. E lá fora do quartinho o esperavam, além do patrão, representa­ntes das agências concorrent­es! Salgado só não arrancou os cabelos porque já não os tinha.

E há, por fim, o caso daquelas senhoras de minhas relações, para lá de outoniças, que arrastavam chinelinha­s pelo parque em vacilante caminhada, uma amparada na outra, pulando de assunto em assunto ao sabor de memórias mais e mais despovoada­s.

– Que fim levou Carmelita Moreira?

– Sou eu – informou a outra, sem estranhar a pergunta.

*

Mas por que mesmo estou eu contando essas histórias?

Chegou o tempo em que preciso deixar recado para mim na secretária eletrônica

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