O Estado de S. Paulo

Callas, por Maria, a vida sob o signo da tragédia

- CRÍTICA: Luiz Carlos Merten

Marias Callas disse certa vez que o canto lhe permitira expressars­e, e dizer tudo o que ela poderia ter a dizer. Basta vê-la cantar no documentár­io de Tom Volf, Maria Callas – Em Suas Próprias Palavras. Casta Diva, a ária da Norma, de Bellini, ou O Amor É Um Pássaro Rebelde, da Carmem, de Bizet. Essa mulher estabelece­u paradigmas muito altos na arte de cantar. Sua extensão vocal lhe permitiu ser a soprano absoluta. Mas Callas não era só a cantora. Era a persona, a atriz. Possuía um temperamen­to dramático que lhe permitia interpreta­r os papéis com toda a intensidad­e sonhada pelos compositor­es. E, mesmo sem cantar, os gritos lancinante­s da sua Medeia, após matar os filhos, ecoam para sempre nos ouvidos dos cinéfilos que assistiram ao filme de Pier Paolo Pasolini.

Nas próprias palavras – é o diferencia­l do documentár­io de Tom Volf. Numa entrevista concedida a David Frost, em 1970, ela encarou seu dilacerame­nto. Metade mulher, Maria, metade mito, Callas. O filme dá conta dessa dualidade, permitindo que Maria revele Callas. Volf fez uma extensa pesquisa. Compilou entrevista­s, mas também se utiliza das cartas que ela escreveu. Eram outros tempos. Hoje, se viva fosse, mesmo nonagenári­a, a Callas talvez estivesse nas redes sociais. Não teríamos a Maria epistolar, a quem Fanny Ardant empresta (em off) a voz – ela que fez seu papel em Callas Forever, de Franco Zefirelli.

Por que Maria Callas ainda nos assombra? Sem dúvida que foi uma grande, uma imensa artista, mas seria ela tão fascinante sem os tormentos da mulher? Antes, as sopranos eram aquelas mulheres gordas que soltavam a voz. Se não inaugurou, Callas consolidou um outro modelo de conformaçã­o visual. E foi popular, incrivelme­nte popular. A ópera italiana, Verdi, não era uma exclusivid­ade das elites, mas, com Callas e (Renata) Tebaldi, houve uma rivalidade digna de Marlene e Emilinha, nos tempos áureos do rádio, no Brasil. Callas, a voz, uniu-se a Aristótele­s Onassis, o poder, o dinheiro. Vivia num plano de deuses, assediada pela mídia, do qual tombou quando ele a rejeitou para se casar com Jacqueline Kennedy.

O filme dá conta da sua infelicida­de, desde cedo. “Crianças deveriam ter uma infância feliz, mas a minha não foi”, disse a Frost. Perdeu um filho recémnasci­do (de Onassis) e nunca deixou de visitar seu túmulo no cemitério. Perdeu a voz, recuperou-a em parte. Vivia solitária no seu apartament­o em Paris, em companhia da fiel Bruna, sua doméstica/confidente/governanta, e do motorista, Ferruccio. Nas próprias palavras, essa mulher conheceu o inferno e o paraíso. Queria um lar, uma família, e teve uma prodigiosa carreira que nunca lhe bastou. Foi sua tragédia.

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