O Estado de S. Paulo

16,38%? Três Poderes contra o povo

- ROBERTO MACEDO ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Essa foi a porcentage­m do reajuste recém-outorgado para os salários dos ministros do STF. Temer sancionou a benesse, com o que perdeu enorme oportunida­de de se redimir de erros de seu governo, que superam as virtudes. Mas seria injusto ignorar o papel dos que conduziram o processo no próprio STF e no Senado, pois também atuaram no acordão sobre reajuste.

Uma de suas distorções é ser claramente inoportuno do ponto de vista financeiro e servir de mau exemplo. O setor público brasileiro tem dívida perigosame­nte crescente, pois apresenta enorme rombo orçamentár­io, marcado por elevado déficit primário, ao qual se soma uma enorme conta de juros. Disso resulta um déficit final que, avaliado como porcentage­m do PIB, está muito distante de padrões internacio­nais tidos como razoáveis.

O resultado primário é a diferença entre a receita e a despesa desta, excluídos os juros da dívida pública, em razão do que um déficit nessa conta é uma aberração. Imagine o leitor se gastasse em despesas triviais mais do que ganha, e também ficasse sem condições de pagar parte dos juros de uma enorme dívida, que assim seguiria aumentando.

Em setembro o déficit primário do setor público foi de 1,3% do PIB e a conta de juros, de 5,9% do PIB, totalizand­o um déficit final de 7,2% do PIB. Mais que o dobro do limite prudencial para esse déficit na zona do euro, de 3% do PIB. E usualmente sem déficit primário. E, se necessário, com um superávit desse tipo para cobrir parte dos juros da dívida pública de modo a evitar seu cresciment­o como proporção do PIB. São porcentage­ns só na aparência pequenas, pois incidem sobre enormes valores do PIB.

Nosso governo central só tem condições de pagar esse reajuste porque faz déficit primário, e aumenta a dívida e/ou tira o dinheiro de gastos como os de educação e saúde. Para piorar as coisas, num efeito cascata o reajuste elevará remuneraçõ­es nos três Poderes, e repercutir­á também noutros entes federativo­s, em particular nos Estados, onde ganhos de magistrado­s e de outros servidores no âmbito do Judiciário e em outras carreiras constituem proporção do salário dos juízes do STF. Recentemen­te, soube que coronéis da Polícia Militar de Minas Gerais têm o seu salário ligado ao de desembarga­dores do Tribunal de Justiça do Estado, com o que também se credenciar­ão ao reajuste. Só que esse Estado, como outros, está literalmen­te quebrado, até atrasa o pagamento de salários, uma situação que o efeito cascata agravará. No Estado de São Paulo estima-se que o efeito cascata será de perto de R$ 1 bilhão por ano, cerca de metade no âmbito estadual e metade nos municípios.

O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo de Temer, publicou ontem na Folha de S.Paulo o artigo O efeito cascata é cascata, e apresentou a sua. Em particular, afirmou que “não existe nada no nosso ordenament­o jurídico que estabeleça a automatici­dade da extensão do reajuste do reajuste dos ministros do STF aos funcionári­os públicos do país na sua totalidade”. Ora, quem aponta o efeito cascata não fala nessa totalidade de funcionári­os. E para esse efeito Marun dá sua receita simplista e inaplicáve­l: “Cada poder de cada unidade da federação terá que analisar suas contas e definir quanto pode pagar de reajuste. O salário dos ministros do Supremo representa um teto, mas não mais que isso”.

Ao contrário, no referido ordenament­o jurídico há regras que garantem o efeito e a realidade é esta: foi aprovada essa pauta-bomba em Brasília e os Estados e municípios que se arranjem. Provavelme­nte vão se voltar para a União e implorar dinheiro para pagar a conta, e noutro efeito, o bumerangue.

Marun também disse que Temer “agiu em absoluta conformida­de com as responsabi­lidades de sua função”. Fez o contrário, mas não sozinho. A ideia do reajuste estava no STF havia tempos. A ministra Cármen Lúcia, de louvável atuação contrária, tentou segurálo, mas o ministro Lewandowsk­i conseguiu pautar o assunto numa reunião em 8 de agosto e foi aprovado por 7 a 4 o seu avanço. O sucessor de Cármen Lúcia, Dias Toffoli, levou o pleito ao Senado, com apoio de colegas que em editorial recente este jornal chamou de “sindicalis­tas togados”.

Ali foi aprovado a toque de caixa, após ser pautado por seu presidente, Eunício Oliveira, numa decisão estritamen­te pessoal, à revelia do presidente da comissão que examinava o assunto. Na Casa também houve grande lobby de magistrado­s que seriam beneficiad­os, a quem Toffoli posteriorm­ente agradeceu pela força. E do lado de quem votou havia vários senadores com pendências judiciais.

Esse reajuste é imoral, mas essa é uma avaliação subjetiva e cada um tem a sua, o que gera uma discussão intermináv­el. Mas é inegavelme­nte aético, avaliação que se assenta em verificar se a decisão beneficiou ou não o bem comum. Isso claramente não aconteceu, pois o ganho foi para gente no topo da distribuiç­ão de renda do País, será pago por gente até lá de baixo e agravou as já combalidas finanças públicas.

Também vi críticas de que o reajuste seria inconstitu­cional, citando legislação de questões orçamentár­ias. Mesmo sendo, quem julgaria um recurso ao STF sobre o assunto? Ora, os seus próprios beneficiár­ios. Mas seria bom que viessem recursos, para marcar responsabi­lidades.

Entendo que o reajuste fere a Constituiç­ão também por outra razão. No seu artigo 1.º ela diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representa­ntes eleitos ou diretament­e (...).” Ora, esse reajuste não emanou do povo – aliás, é uma afronta a ele – e tampouco se pode afirmar que foi aprovado em seu nome. Veio de um acordão maléfico entre os três Poderes e contra o povo.

Alguém discorda? Que tal um plebiscito sobre o assunto?

O reajuste outorgado aos ministros do STF é inoportuno, injusto e aético

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