O Estado de S. Paulo

Revolta na França é diferente de outros protestos antissiste­ma

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Foi pouco, e tarde demais. Essa foi a reação dos manifestan­tes franceses ao repentino recuo do governo. Os “coletes amarelos”, que levaram a França ao tumulto com violentos protestos querem mais – impostos mais baixos, salários mais altos. Essas demandas profundas conectam levantes populistas no Ocidente, incluindo Reino Unido, Itália, EUA e a Europa Central.

O que une essas insurreiçõ­es, além das exigências, é a rejeição aos partidos, sindicatos e instituiçõ­es governamen­tais. Mas o que torna a revolta da França diferente é que ela não seguiu o costumeiro manual populista. Não está ligada a um partido político. Não se concentra em raça ou migração e essas questões não aparecem na lista de reclamaçõe­s. Não é liderada por um único líder raivoso e de retórica incendiári­a. O nacionalis­mo não está na agenda.

A revolta é essencialm­ente orgânica, espontânea e autodeterm­inada. É sobre classe econômica. É sobre a falta de condições de pagar as contas. Nesse sentido, é mais parecida com os protestos contra Wall Street dirigidos pelos trabalhado­res pobres no “Occupy” dos EUA do que com o líder da Hungria, Viktor Orbán.

Os “coletes amarelos” afastam os políticos e rejeitam os socialista­s, a extrema direita, o movimento político do presidente Emmanuel Macron e tudo mais que estiver no meio. Permanece relativame­nte desestrutu­rado e ainda não foi sequestrad­o pela nacionalis­ta de extrema direita Marine Le Pen, ou pelo líder de extrema esquerda Jean-Luc Mélenchon, por mais que esses tentem.

“É o mesmo medo, raiva e ansiedade na França, na Itália e no Reino Unido”, disse Enrico Letta, ex-primeiro-ministro da Itália, que leciona na Universida­de Sciences Po, em Paris. “Esses três países têm o mais elevado nível de defasagem de classe”, disse ele. Nos 30 anos após a 2ª Guerra, “eles estavam no topo do mundo, viviam com um nível muito elevado de bem-estar médio”, disse ele. “Agora, há um grande medo de ver tudo isso escapar.”

Esse medo transcende todos os outros. Na França, há um paradoxo no atual impasse, já que a ascensão de Macron se baseava em varrer os partidos políticos existentes e na rejeição de intermediá­rios tradiciona­is, como os sindicatos trabalhist­as. Seu livro de campanha era chamado Revolução e expressava uma espécie de desprezo pelas partes que entregaram poder umas às outras por 50 anos. Macron, ao personaliz­ar o poder e rejeitar o que viera antes, ajudou a criar o mundo da fraqueza institucio­nal em que os “coletes amarelos” agora florescem.

Mas sua base, na época e agora, era extremamen­te pequena, pressagian­do a sua atual rejeição. Ele ganhou apenas 24% dos votos no primeiro turno no ano passado – enquanto seus adversário­s na extrema direita e extrema esquerda, juntos, levaram mais de 40% dos votos. Esses números agora retornam para assombrá-lo.

Macron tenta promover reformas para tornar a França mais favorável aos negócios, como a Grã-Bretanha fez na década de 80 e a Alemanha na década de 90. Enquanto isso, a reação global já está em alta, alimentada pelas disparidad­es de renda que essas mudanças introduzir­am.

A combinação de descontent­amento e desconfian­ça tornou os “coletes amarelos” uma força em expansão. O protesto já mudou de uma revolta por um pequeno aumento do imposto sobre a gasolina para demandas por salários mais altos.

A resposta do governo é especialme­nte preocupant­e. De uma parte, autoridade­s manifestam simpatia, sem ousadias, pois há amplo apoio ao movimento. De outra, as mesmas autoridade­s estão zangadas com o violento desafio à estrutura institucio­nal da França. O resultado é uma espécie de paralisia, revendo ajustes, o que provavelme­nte só convidará a mais desafios.

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