‘Tinta Bruta’, um corpo elétrico e sua necessidade de afeto
Longa dos gaúchos Filipe Matzembacher e Márcio Reolon tem tudo a ver com o contexto político nacional
Filipe Matzembacher trabalha em dupla com Márcio Reolon. Com seu longa anterior, BeiraMar, eles foram à Berlinale. Fizeram sucesso. Com Tinta Bruta, retornaram ao Festival de Berlim, em fevereiro, e dessa vez foi a consagração – Urso gay, prêmio da associação europeia de cinemas de arte. “Foram prêmios muito bacanas, porque outorgados por júris bem diversos. O da associação é formado por distribuidores e exibidores de filmes de arte/ensaio. Isso já abre uma porta muito interessante para o filme da gente entrar nesse circuito e passar na Europa toda”, diz Matzembacher.
Tinta Bruta é sobre um garoto, Pedro, que sofre um processo criminal. Só isso bastaria, quem sabe, para desestabilizá-lo, mas a irmã está indo embora e ele vai ficar sozinho. Como o codinome de Garoto Neon, Pedro faz performances eróticas na internet. E descobre que existe outro ‘garoto neon’. “O filme começou a nascer para a gente de uma constatação”, conta Matzembacher. “Porto Alegre foi ficando cada vez mais uma cidade degradada, distante, violenta. As pessoas foram se isolando, ficando solitárias. Começaram a partir. Nós, que ficamos, ao ver todos esses amigos se indo, começamos a pensar no assunto. O filme foi se construindo.” A questão da internet? “Para a geração da gente é muito comum. Está todo mundo ligado nas redes. Começamos a pesquisar opções de lazer, de relacionamentos. E chegamos nesses websites que são bastante comuns na rede.”
Embora seja um personagem fictício, Pedro, o garoto neon, internaliza uma violência muito forte contra o outro, o diferente. “O Pedro não quer ser vítima, e por isso a violência vira uma via de mão dupla. Não é uma coisa isolada, pontual. O Brasil está muito violento. Há muito preconceito de classe, de gênero, de raça. Esse país virou uma loucura.” Por isso mesmo a acolhida em Berlim foi tão emocionante. “Encontramos um público muito interessado naquilo que estamos mostrando. A resposta foi sempre muito boa em todas as sessões. E o interesse não era só pela forma, era pelos personagens também. Claro que as coisas são indissociáveis, mas esse foi um filme que a gente pensou muito como cinema. Nasceu com a proposta de ousar na forma. Testamos muita coisa, mas era importante que a forma não ofuscasse o personagem. A angústia do Pedro é geracional, é muito viva, muito real.”
O repórter arrisca uma comparação. Apesar de todas as diferenças, Pedro não deixa de ser um outro corpo elétrico, como o do protagonista do longa de Marcelo Caetano que foi um dos melhores filmes de 2017, como Tinta Bruta, no finalzinho de 2018, está sendo um dos melhores deste ano. Mesmo com risco de spoiler, ambos vivem a vida muito erotizados – os tais corpos elétricos – e, no limite, não vislumbram ‘soluções’. São corpos também suspensos, um flutuando no mar, o outro no ritmo inebriante da dança. “Entendo o que você quer dizer, e isso era essencial para a gente. Amoralizar o corpo, tirar toda moralização. O corpo não representa só o desejo e, às vezes, pode até desmistificar o desejo. O corpo do Pedro nos interessa como corpo em movimento – em cenas de dança, sexo, violência.”
E Matzembacher reflete – “Nosso olhar tem muito a ver com o contexto, a situação política do País. Não dá para desviar dessas questões.” É outra coisa que talvez seja comum com Corpo Elétrico – “São filmes sobre relacionamentos, sobre afetos”, complementa Matzembacher. “Acho que, no fundo, é o que está em discussão aqui. Nessa fase tão dura, as pessoas precisam se unir, fortalecer os afetos. O isolamento é muito doloroso.” Shico Menegat, que faz Pedro, é um achado. Sandra Dani, que faz uma participação como a avó, é uma diva gaúcha. Teatro, cinema. “Ela é maravilhosa e nós a queríamos, absolutamente, no filme. Para atrizes como a Sandra papel não tem tamanho. Pode ser uma cena, e elas dominam.” E o Shico? “Você sabia que ele nunca atuou? A partir do momento em que o descobrimos e escolhemos, o Shico passou por um trabalho longo de preparação. Mas ele nos surpreendeu. Em toda parte, o público se rende ao Shico. Ele é intenso, visceral.”