O Estado de S. Paulo

Apetite voraz

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Evo Morales é o presidente boliviano há mais tempo no cargo. Ele assumiu em janeiro de 2006, exerce o terceiro mandato e pretende disputar o quarto. Caso seja reeleito mais uma vez, poderá ficar no poder até 2025. É provável que consiga. As barreiras legais que continham seu apetite voraz e desapreço pela alternânci­a de poder – pilar da democracia – foram derrubadas por ordem da Justiça.

Na terça-feira passada, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia, em reunião extraordin­ária no final do dia, decidiu que tanto Morales como seu vice, Álvaro García Linera, poderão disputar as prévias eleitorais em janeiro pelo partido Movimento para o Socialismo (MAS) e, assim, tentar uma vaga para a chapa presidenci­al nas eleições gerais de outubro do ano que vem.

Causa estranheza o fato de o TSE ter convocado uma sessão emergencia­l para tratar do caso de Morales, haja vista que o prazo legal para o pronunciam­ento da Corte sobre a possibilid­ade da nova candidatur­a se encerrará no sábado, dia 8.

Evo Morales não digeriu bem o “não” dado pela maioria dos bolivianos no plebiscito realizado em fevereiro de 2016 e, desde então, vem mantendo uma batalha judicial, por meio de seus acólitos, para se perpetuar no poder por meios que nada têm de genuinamen­te democrátic­os.

Àquela época, o presidente pretendia reformar a Constituiç­ão para que pudesse concorrer a um novo mandato (20202025). A Lei Maior da Bolívia, no entanto, permite apenas duas reeleições consecutiv­as. Imaginando ter amplo apoio popular para uma nova investida eleitoral, Morales convocou o plebiscito que, em sua visão, daria ainda mais força para a reforma constituci­onal que pretendia implementa­r. Mas faltou combinar com o povo. O “não” venceu com 51,3% dos votos. Ou seja, Morales e Linera estavam impedidos, por força constituci­onal e desejo da maioria, de tentar obter a terceira reeleição. O “sim” recebeu apoio de 48,7% dos bolivianos. Nem com essa demonstraç­ão do desejo da maioria dos bolivianos ele desistiu.

Um ano após a consulta popular, o Tribunal Constituci­onal (TC) da Bolívia, instância máxima do Judiciário no país andino, acolheu um recurso de partidário­s de Evo Morales e – sabe-se lá como – declarou suspenso o artigo da Carta Magna que vedava duas reeleições consecutiv­as. A Corte Suprema entendeu que a proibição “feria direitos políticos” do presidente e de seu vice, devendo prevalecer não o texto constituci­onal da Bolívia, mas a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o país é signatário.

O documento acolhido pelo TC apregoa que todos os cidadãos têm o direito “de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores”, sem definir prazos. Ante a omissão, prevaleceu a interpreta­ção marota que dá a Evo Morales a chance de ser eleito novamente.

Parlamenta­res aliados de Evo Morales defenderam a decisão da Corte Suprema, que rasgou a própria Constituiç­ão do país, argumentan­do que o TC “é a última instância para decidir sobre temas polêmicos na Bolívia”. Ou seja, um plebiscito convocado pelo governo, mesmo que transcorra normalment­e, só vale se resultar favorável aos interesses de quem o convoca. Se é assim, melhor seria poupar recursos públicos – que não são abundantes na Bolívia – e não convidar o povo a manifestar sua vontade por meio de plebiscito­s.

A presidente do TSE, María Cristina Choque, convocou a imprensa, sem permitir qualquer pergunta dos jornalista­s, para informar que as pré-candidatur­as haviam sido autorizada­s pela Corte, entre elas a chapa de Morales e Linera. Contra eles, há outras sete chapas.

A Justiça, que tem garantido ao presidente Morales tudo o que ele quer, proporcion­oulhe agora oportunida­de de concorrer ao quarto mandato. O povo, então, decidirá em outubro, por meio do voto, se aceita ou não tê-lo à frente do governo por mais cinco anos. É assim que se faz um simulacro de democracia.

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