A artilharia de Bia Ferreira
Cantora surge como uma das vozes mais fortes de sua geração
Mais de 80 ameaças de morte. “Você já era. Vou colocar sua cabeça a prêmio.” “Macaca, você vai morrer.” Um vídeo com sua imagem cantando teve o som original suprimido e um novo inserido como se ela repetisse: “Sou uma preta macaca f... / sou uma preta macaca f...”. Alguns policiais a reconheceram em uma praça. Era a mesma garota que cantava pelas ruas a música que fazia as pessoas abrirem uma roda e se indignarem: “Diga não à polícia racista / Diga não a essa militarização fascista / Não fique só assistindo / Muita gente chora, irmão, enquanto você tá rindo”. Um deles gritou: “Olha a menina da música da polícia”. Outro sacou o cassetete e a golpeou. Outro dia, ao receber a namorada com um beijo no Aeroporto do Galeão, no Rio, foi hostilizada por jovens vestidos com camisas do Brasil que ameaçavam agredi-la. “Isso vai acabar”, diziam.
Bia Ferreira é mesmo um assombro de convulsionar mentes racistas. Seu canto de cor preta e sotaque soul contorce o próprio corpo e parece deixar seus olhos em chamas assim que o pensamento aciona o passado, o liga ao presente e mostra que um e outro não andam em fila, mas sobrepostos. As questões raciais seguem as mesmas, mas, quando sua voz sai, não perde viagem: “Existe muita coisa que não te disseram na escola / Cota não é esmola / Experimenta nascer preto na favela pra você ver / O que rola com preto e pobre não aparece na TV”. “Tome minha boca / Pra que eu só fale / Aquilo que eu deveria dizer / Tome a caneta, a folha, o lápis / Agora que eu comecei a escrever / Que eu nunca me cale.”
Sua aparição maior, até aqui, também foi um susto. “Eu nunca havia feito nada parecido”, lembra. Bia foi parar no elogiado musical de Elza Soares por indicação da cantora Larissa Luz para ser sua substituta por algumas apresentações e, então, tudo aconteceu muito rápido.
“Vai começar a peça”, ouviu na primeira noite, suando. A jovem de 25 anos, filha de um pastor evangélico e uma regente de coral, sabia que estar ali poderia significar a maior reverberação de sua voz desde aquele infeliz almoço em que esteve com o pai e a mãe na mansão de uma família de alemães – o dia em que odiou a subserviência cordial dos pais quando os viu concordarem com a dona da casa enquanto suas cabeças pareciam estar sendo pisoteadas. “Eu só não entrei em uma faculdade no Brasil quando cheguei da Alemanha porque algum negro cotista pegou a minha vaga.” Bia se levantou. “Eu tenho vergonha de vocês”, disse, olhando para os pais, e saiu da mesa. Ela se trancou no quarto até a hora de ir embora, apanhou um lápis e deixou jorrar um fluxo de versos raivosos que se tornariam a letra de Cota Não É Esmola, sua primeira causa em forma de canção.
O terceiro sinal anunciava um tempo novo para Bia. “Minha mão pingava.” E então, ela já era Elza em um fenômeno de transferência de carga emocional mais poderosa do que a própria interpretação. A noite de sua estreia tinha casa lotada e uma plateia absolutamente entregue. Bia, a novata, arrasou. Uma veterana que ninguém conhecia? Há quanto tempo fazia teatro? “Só tive dois meses para estudar tudo, fizemos três ensaios com a equipe toda.” Seu talento era um assombro talvez pelas verdades que, antes de saírem do texto, já eram suas. “Descobri ali algo que eu não sabia que tinha.”
O que ela sabia, porém, já estava guardado. A Bia cantora e compositora finaliza um álbum para sair em fevereiro. Um Chamado será um torpedo em forma de canção equivalente ao impacto de cinco rappers dos mais linhas-duras. Além da narrativa sagaz, sua dicção impressiona por ter velocidade sem criar ruído no entendimento e sua entrega é autossuficiente, ela e o violão, deixando plateias perplexas. Uma delas se vê no projeto Sofar, gravado em Curitiba, um vídeo de
Cota Não É Esmola com mais de 5 milhões de visualizações. Ao final, ela conta, alguns jovens choraram. “E eu dizia, pessoal, obrigado pelas lágrimas, mas mudem seus pensamentos para que eu não precise mais cantar essas coisas, por favor.”
A maior parte das músicas já foi bem compartilhada pelas redes. Aberto e finalizado por duas poesias, o disco traz Não precisa Ser Amélia, Levante a Bandeira do Amor, De Dentro do Ap, Só Você me Faz Sentir, Cota Não É Esmola e
Eu Boto Fé, produzida por B Negão e com lançamento hoje, nas redes. Antes mesmo de o álbum sair, seu nome aparece em indicações para dois prêmios importantes: o WME (Woman Music Event), da jornalista Claudia Assef, e da SIM (Semana Internacional da Música).
Os olhos de Bia brilham quando ela percebe que a espécie de emoção da consciência que sugere com sua poesia chega a pessoas das mais diversas origens e que sua mensagem está sendo decodificada. Mas o que seria mais difícil? Mudar o pensamento de quem ainda acredita que a pigmentação da pele define a superioridade humana ou acordar os subservientes que, como seus pais, dizem sim para não ganhar inimigos? “Um branco nunca passou por aquilo que um preto passa. Ele nunca pegou um elevador, recebeu um olhar estranho e ouviu a pergunta: ‘Você faz faxina em qual andar?’ Esse é o mais difícil de mudar.”
Um branco nunca passou por aquilo que um preto passa. Isso é o mais difícil de se mudar” Bia Ferreira