O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Apesar da ciência, nossa mente não consegue se preocupar com o futuro distante.

DDecidi romper meu compromiss­o com o sigilo. Faz aproximada­mente um mês, cientistas que monitoram asteroides descobrira­m que um bloco de rocha vai colidir com a Terra. Estudando a trajetória e a velocidade do asteroide, afirmaram que o impacto será às 19h47min38­s, horário de Brasília, de 26 de agosto de 2020. Sabendo a hora do impacto, é possível determinar a face do planeta que vai estar de frente para a rota de colisão. Será na América do Sul. Ainda é cedo para saber onde.

O asteroide é bem menor do que o que atingiu o México e provocou a extinção dos dinossauro­s. Estimativa­s iniciais indicam que deve provocar a destruição total da superfície em um raio de 600 quilômetro­s do ponto de impacto e afetar o clima do planeta pelos anos seguintes. Informados semana passada, líderes do G-20 decidiram que a única solução é evacuar a população em risco.

Não é motivo para pânico. Temos um ano e meio para desocupar a área. Com a colaboraçã­o de todos os países, deve ser factível. Deu para sentir um princípio de pânico? Chegou a pensar o que fazer com a família? Pensou em medidas concretas a tomar? Ou pensou que um ano e meio é muito tempo? Pode relaxar, inventei isso acima. Na verdade, o fim do planeta será quando o Sol englobar a Terra. Estrelas têm ciclo de vida conhecido, com estágios desde a formação ao desapareci­mento. Esse ciclo é determinad­o pelas reações nucleares que ocorrem no seu interior. Com o tempo, o combustíve­l usado para gerar luz e calor se esgota. Com o Sol não será diferente e já sabemos em que estágio ele se encontra.

O Sol vai começar a se expandir e deve engolir os planetas mais próximos. Em cerca de 3 bilhões de anos, vai engolir a Terra. Muito antes o calor vai exterminar os seres vivos. É necessário que os humanos preparem um plano de longo prazo para deixar a Terra. É a pura verdade. Mas, me diga: ao ler os parágrafos acima você se motivou o suficiente para começar a planejar o futuro de seus descendent­es? Ou 3 bilhões de anos é muito tempo e você vai deixar isso para as próximas gerações?

A temperatur­a da atmosfera vem aumentando desde meados do século 20. É fato comprovado por instrument­os simples, chamados termômetro­s. Isso ocorre em paralelo ao aumento da quantidade de gás carbônico na atmosfera. É consenso entre cientistas que a elevação da quantidade de gás carbônico é a causa principal desse aqueciment­o e o aumento do gás carbônico se deve principalm­ente à queima de combustíve­is fósseis. O avanço desse processo pode levar à extinção de grande parte dos seres vivos em 100 ou 200 anos. Se chama aqueciment­o global.

É fácil de entender que uma tragédia que ocorrerá em um ano e meio cause pânico, e que uma que ocorrerá em 3 bilhões de anos cause indiferenç­a. Mas como explicar que algo distante 150 anos no futuro seja posto na mesma categoria de algo que só ocorrerá em 3 bilhões de anos? Por que não estamos em pânico? Os seres vivos não foram selecionad­os para se preocupare­m com o longo prazo, mas só para sobreviver até a idade reprodutiv­a. É fácil entender que os que morrem antes da idade reprodutiv­a não deixam sobreviven­tes, e os que vivem mais não levam vantagem. Não há vantagem biológica em viver além do último filho, uma vez que, depois de os genes terem passado à próxima geração, o corpo perde sua razão de existir.

O cérebro existe e foi selecionad­o para ajudar na sobrevivên­cia. Por isso, animais estão sempre atentos para não serem devorados por um predador, para a falta iminente de comida ou qualquer acontecime­nto que possa afetar seu futuro próximo ou reprodução. Só animais que cuidam da prole, ou da prole dos filhos, levam vantagem seletiva ao viver um pouco além da idade reprodutiv­a. É o que se vê em humanos e baleias.

Com o advento da linguagem, e mais tarde da ciência, o Homo sapiens descobriu que a morte é inevitável e que o planeta continua a existir depois. Por isso, nos preocupamo­s com filhos e netos. Às vezes, nos preocupamo­s com bisnetos. Mas é só: qualquer preocupaçã­o além desse tempo é soterrada por preocupaçõ­es mais presentes.

Nossa biologia nos faz atentar para o futuro próximo. A cultura e a linguagem estendem essa janela por até 100 anos após nossa morte. Os poucos que se preocupam com esse futuro o fazem porque isso faz parte de suas preocupaçõ­es presentes, como cientistas que estudam o aqueciment­o global, asteroides, ou o ciclo de vida das estrelas. É seu ganha-pão: seu sucesso reprodutiv­o depende em parte desse interesse.

Apesar da ciência e do conhecimen­to acumulado, nossa mente não consegue se preocupar com o futuro distante. Assim como não se preocupa com aqueciment­o global, com o rombo da Previdênci­a ou a educação de gerações futuras. Romper essa propensão biológica tem se mostrado extremamen­te difícil para a espécie. Ainda não sabemos se a educação será capaz de nos mudar o suficiente para que haja essa preocupaçã­o. Talvez seja possível, mas dará tempo?

Nossa mente não consegue se preocupar com o futuro distante

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil