O Estado de S. Paulo

Cartas ao mestre

Correspond­ências ilustram a amizade entre Lina Bo Bardi e o italiano Gio Ponti.

- Edison Veiga

“Eu deixei a Itália porque descobri que a Itália era um país para ser deixado”, escreveu a arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1922) em 5 de setembro de 1967, mais de 21 anos depois de ter trocado seu país natal pelo Brasil. A carta, até então desconheci­da do público brasileiro, é um dos registros da famosa arquiteta que se encontram em Milão, em correspond­ências trocadas por ela com seu amigo e ex-chefe Gio Ponti, famoso arquiteto italiano (1891-1979).

Na pequena carta de poucas linhas, ela diz que foi tocada pelas saudações de verão de Ponti e comenta que as férias “amaciaram” seus sentimento­s com relação à Itália – sugerindo que ela havia acabado de retornar de uma viagem à sua pátria-mãe. “Toda a Itália se amaciou. Quem se recorda de um tempo duro e em chamas?”, comenta Lina, numa possível alusão aos tempos da Segunda Guerra, justamente pouco antes de ela se mudar para o Brasil.

O material, uma das cartas de um total de 28 páginas, está no epistolári­o de Ponti, um arquivo mantido pelo fotógrafo e arquiteto Paolo Rosselli, neto do famoso arquiteto, em seu estúdio fotográfic­o localizado no bairro Sesto San Giovanni, em Milão, na Itália. Ali estão duas cartas escritas por Lina e uma escrita por Pietro Maria Bardi (1900-1999) ao arquiteto Gio Ponti, seis de Ponti aos Bardis e uma relação, datilograf­ada, de trabalhos de Ponti que seriam exibidos em mostra em São Paulo.

Uma curiosidad­e: Lina escreve as cartas ao amigo em italiano, é claro. Mas, assina, em bom português, com a frase “o abraço amigo da Lina Bo”.

“Lina era uma jovem arquiteta quando trabalhou com Gio Ponti. Foi o primeiro trabalho dela”, conta Rosselli. Recémforma­da arquiteta pela Universida­de de Roma, ela mudou-se para Milão no início dos anos 1930. Atuou com Ponti na revista de arquitetur­a Domus, fundada pelo arquiteto em 1928, e outras publicaçõe­s com participaç­ão dele. “As revistas, muito conceituad­as, se ocupavam principalm­ente de arquitetur­a dos interiores”, afirma a museóloga Anna Maria Carboncini Masini, conselheir­a do Instituto Bardi – Casa de Vidro, em São Paulo. “Depois, ela conheceu Pietro e, juntos, se mudaram para o Brasil. Só então Lina se tornaria uma arquiteta muito reconhecid­a”, diz Rosselli. A amizade de Lina e Ponti, entretanto, resistiu aos anos.

De acordo com o arquiteto Renato Anelli, conselheir­o do Instituto Bardi – Casa de Vidro, organizaçã­o que guarda o acervo de Lina e Pietro no Brasil, da correspond­ência entre Ponti e os Bardis, somente eram conhecidas algumas cartas dele para ela. “No acervo do Instituto Bardi existem apenas cartas de Ponti para Lina. São cartas-desenho, muito bonitas, com textos”, conta.

Nas cartas que estão em Milão, Ponti esbanja afeto. Em novembro de 1975, brinca sobre a idade avançada. “Eu tenho cabelos brancos, e você? Se já os tem, estará todavia certamente belíssima como já o é por beleza e inteligênc­ia. Fale-me sobre o Brasil”, escreve ele. Em setembro de 1976, afirma que está “pensando sempre na Casa de Vidro”, residência dos Bardis desde 1951.

Nascida em Roma, Lina construiu a maior parte de sua carreira no Brasil, para onde emigrou depois de viver em Milão e conhecer e se casar com o crítico de arte Pietro Bardi. No País, acabou se tornando uma das mais importante­s arquitetas do século 20, sendo autora de obras emblemátic­as como a sede do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Sesc Pompeia e a Casa de Vidro – que foi residência do casal e que hoje abriga o acervo do Instituto Bardi.

Um dos mais importante­s nomes da arquitetur­a e do design italianos do século 20, Gio Ponti nasceu em Milão. É dele o projeto da Faculdade de Matemática de Roma, em Roma, da Torre de Pirelli, em Milão, do restauro dos interiores da Universida­de de Pádua, em Pádua, e do Museu de Arte de Denver, nos Estados Unidos. Ponti foi professor da Faculdade de Arquitetur­a da Politécnic­a de Milão.

Editorial. De acordo com pesquisa acadêmica desenvolvi­da por Anelli, Lina colaborou com

Ponti até 1943. A mudança dela, já casada com Pietro Bardi, para o Brasil, ocorreu três anos depois.

Anna Maria conta que, no acervo do Instituto Bardi, existe uma carta manuscrita de Gio Ponti – de fim de 1943 ou começo de 1944 –, uma foto da visita dele a São Paulo, com a mulher, nos anos 1950, bilhetes breves de Lina de 1954, cartas anuais dele para ela nos anos 1960, sempre no aniversári­o dela. E ainda cartas de Ponti de 1957, de 1968 – com o nome de quatro firmas que fazem caixilhos em ferro dobrado – , de 1975 – comunicand­o

a morte da esposa –, de 1977 – com um projeto de exposição. “Não temos muita correspond­ência”, informa Anna.

A amizade e o ímpeto criativo de Lina e Ponti foram tema de uma mostra realizada em Londres, em 2012. A exposição, organizada pela Architectu­ral Associatio­n School of Architectu­re, foi chamada de Lina & Gio: Os Últimos Humanistas. A ítalobrasi­leira costumava chamar Ponti de “o último humanista”, por conta de sua visão de que a arquitetur­a deveria ser social e culturalme­nte comprometi­da.

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JOVECI C. DE FREITAS/ESTADÃO - 9/2/1988 Lina. No País, se tornou uma das mais importante­s arquitetas do século 20
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FOTOS EDISON VEIGA/ESTADÃO De Lina para Ponti. Em italiano, mas assina em português
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Afeto. Fachada do arquivo de Ponti onde está a carta de Gio para Lina (E)

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